O presidente que se elegeu criticando a “velha política do ‘toma-lá-dá-cá’” e prometendo combater implacavelmente a corrupção (usando Sergio Moro como fiador) acabou se rendendo ao “presidencialismo de coalizão”, que se popularizou durante o segundo mandato de Dilma e vicejou a partir de então.
Segundo o cientista político Murillo de Aragão, até 2015 todas as emendas orçamentárias parlamentares possuíam caráter discricionário, ou seja, dependiam de autorização do governo federal para liberação. Tal sistemática estimulava negociações com o Executivo em troca de apoio.
Em 2019, através da Emenda Constitucional nº 100/19, o Legislativo estabeleceu que as emendas de bancadas estaduais também deveriam ser obrigatoriamente pagas. No mesmo ano, a Emenda Constitucional nº 105/19 autorizou repasses de recursos de emendas individuais impositiva a estados, diretamente a municípios e ao Distrito Federal, sem a necessidade de convênios com o governo central. Por fim, a partir da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2020, a obrigatoriedade de execução passou a abranger tanto as emendas do relator-geral da Lei Orçamentária Anual quanto as das comissões permanentes da Câmara e do Senado.
Essas mudanças alteraram o desequilíbrio de forças entre o Executivo e o Congresso. O presidente
sempre teve uma soma maior de poderes do que as esferas legislativa e
judiciária, mas a questão orçamentária subtraiu seu poder de barganhar a execução de emendas em
troca de apoio. Agora, tanto os parlamentares que apoiam o governo quanto os independentes e de oposição têm suas emendas
executadas por força constitucional. Consequentemente, os congressistas podem votar contra o governo sem temer que seus recursos orçamentários sejam
bloqueados, o que força o governo a ser mais proativo na atração de apoio
político, visto que o poder está sendo compartilhado como nunca antes na história deste país.
Ainda em 2019, Bolsonaro se tornou o presidente com o maior número de derrotas porcentuais em vetos no Congresso. O modelo político por adotado não garantia apoio parlamentar consistente, daí a razão de, no ano seguinte, o presidente se amancebar com o centrão buscando construir uma base política — que ainda se encontra em formação —. e assim a autonomia dos parlamentares ficou muito maior.
Fato é que estamos caminhando para um regime semiparlamentarista numa época em que o
Judiciário e o federalismo ganham força. A pandemia mostrou uma federação em funcionamento e um presidente que está deixando de ser a “Sua
Majestade” descrita por Ernest Hambloch. E ainda que não estejam
claras e não sejam percebidas pela opinião pública, as transformações já
produzem efeitos significativos na política nacional.
Bolsonaro demitiu três ministros, admitiu dois, promoveu uma dança das cadeiras e os comandantes das Forças Armadas foram embora. Um terremoto. Mas, terminado o furdunço, como fica? Para onde vai isso? Os militares não vão se submeter à vontade do capitão: pelo contrário, os atos recentes do mandatário reduziram ainda mais seu respaldo nos Altos-Comandos.
O Congresso não vai se satisfazer com a demissão de Ernesto Araújo: como a política externa continuará sendo determinada por Eduardo Bolsonaro e Filipe Martins, e Ricardo Salles é um entrave no relacionamento com outros países, a pressão voltará.
O Centrão não vai se satisfazer com a
nomeação de Flávia Arruda para a
Secretaria de Governo. Ao contrário: Flávia
é uma porta escancarada para o insaciável apetite do grupo, que fará uma
exigência atrás da outra, comprometendo o (já inexistente) equilíbrio fiscal.
Se Bolsonaro resistir, Arthur Lira lhe mostrará a carta do
impeachment.
A pandemia só vai melhorar de verdade quando e se houver vacinação em massa — o que não ocorrerá nos próximos meses. Bolsonaro vai continuar sabotando o isolamento social, e um cenário de 5 000 mortes por dia, com um total de mais de 400 000, é perfeitamente plausível.
A economia continuará em crise, com desemprego alto, inflação, juros subindo, e se esse orçamento fora da realidade for mantido, há risco de shutdown do governo (caso em que não haveria dinheiro sequer para botar vacina em avião).
A pressão internacional por causa da pandemia e do meio
ambiente está se elevando, e sanções econômicas não estão descartadas. Há
problemas por todos os lados, mas o maior de todos reside em um dilema
irreconciliável na pessoa do próprio presidente. De um lado, a militância (que
está no coração de sua propaganda e de sua popularidade) exige que ele rompa
com o que ela chama de “sistema”; do
outro, a governabilidade exige que se entenda com o “sistema”, senão não consegue governar e cai.
Uma pessoa normal daria prioridade a se manter no poder, mas
não é por acaso que Bolsonaro tem a militância que tem. Ele é naturalmente destrutivo e, como uma criança, não aceita
ser contrariado: sempre que cede à governabilidade (na demissão de Araújo, por exemplo), tende a fazer
algo radical para demonstrar que é ele quem manda (daí a demissão do ministro
da Defesa). Seu comportamento ciclotímico sabota a si mesmo, imobiliza e
inviabiliza seu governo e gera crises institucionais.
Bolsonaro teve a
primeira crise séria com o Congresso
no início do governo e outra em maio passado, quando bateu de frente com o Supremo e quis dar um golpe militar,
mas não conseguiu. Agora, brigou de novo com o Congresso e, se pudesse, tria partido para o golpe. A questão é que ele
não conta com o apoio da maior parte da sociedade, da imprensa, do Supremo, da maioria do Congresso, dos grandes empresários, dos
banqueiros, dos militares ou de países estrangeiros. Só o Centrão ainda o sustenta, e a um custo altíssimo, que tende a se
tornar impagável.
Nada garante que Bolsonaro
sobreviva a uma nova crise institucional. Sua média é de uma crise a cada nove meses,
e ainda faltam 21 meses para o fim de seu mandato.