terça-feira, 28 de dezembro de 2021

RETROSPECTIVA 2021



Final de ano sem retrospectiva e resoluções de ano novo é como ceia de Natal sem peru e castanhas. Mas como falar em peru e castanhas quando 13 milhões de brasileiros não têm emprego e mais de 20 milhões não têm sequer o que comer? Quando a recessão bate à porta e as pesquisas indicam que um ex-presidiário será eleito presidente (de novo) com 171% dos votos válidos?

Resolução de ano novo é como promessa de político em campanha: zero chance de ser honrada. Já as retrospectivas servem, em anos aziagos, somente para botar sal na ferida. Parafraseando o mefistofélico mandatário de turno, "nada não está tão ruim que não possa piorar". Então, hope for the best but expect the worst.

Em 2014, a reeleição de Dilma jogou o Brasil na pior recessão da história recente do país — lembrando que até então não estavam no radar o SARS-CoV-2 e a praga negacionista que se alojaria no Palácio do Planalto dali a quatro anos

Encerramos 2015 com uma presidanta encurralada, sem autoridade, nexo ou respeito, com um presidente da Câmara descrito como “homem de poderes sobrenaturais”, um ex-presidente da República picareta, sempre prestes a “virar o jogo” mediante conchavos milagrosos e um cangaceiro presidindo o Senado e atuando como marechal de campo na guerra para manter no comando a “presidanta honesta, competenta e eleita democraticamente “. 

Em dois mil e dezechega — como se dizia no final de 2016 —, a anta incompetenta foi penabundada e o vice decorativo, tido e havido como "a ponte que poderia conduzir o país à salvação" foi promovido a titular. 

Nesse entretempo, o senhor das urnas capaz de eleger qualquer poste para qualquer cargo tornou-se réu pela primeira vez, e a economia deu sinais de recuperação. A inflação e a taxa básica de juros começaram a recuar, os índices de desemprego pararam de crescer e reformas importantes para o país começaram a avançar. Mas não há nada como o tempo para passar.

Nem bem o calendário virou para 2017 — ano em que esperávamos melhorias mais consistentes —, rebeliões eclodiram nos presídios e uma greve absurda da PM causou a morte de centenas de inocentes. Mas ninguém imaginava que dali a três anos milhares de brasileiros morreriam diariamente de Covid enquanto um psicopata genocida daria de ombros, riria e diria: “E daí?”.

Foi também em janeiro de 2017 que uma queda de aeronave matou o ministro Teori Zavascki, deixando os processos da Lava-Jato no STF sem relator às vésperas da homologação da Delação do Fim do Mundo. Ainda assim, houve avanços significativos na luta contra a corrupção. 

Foram para na cadeia elementos como Rodrigo Rocha Loures — o “homem da mala”, ex-assessor e pessoa da mais estreita confiança do presidente Michel Temer —, Geddel Vieira Lima — aquele dos R$51 milhões e também amigão do peito do mandatário de turno —, os ex-governadores Sérgio Cabral e Anthony Garotinho, quase todos os membros do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro e do alto escalão da Alerj (a começar pelo presidente da Casa) e, em abril, o picareta dos picaretas.

Em maio, uma conversa de alcova entre Temer e o moedor de carne bilionário dono da JBS veio a público. O país parou enquanto o vampiro do Jaburu ensaiava o papel de vestal ofendida — que ele só se sentiu preparado para encenar na tarde do dia seguinte, quando finalmente tentou explicar o inexplicável e justificar o injustificável. 

Em rede nacional, Temer disse que não renunciaria, lamentou que "o fantasma da crise política tivesse voltado a rondar o Planalto" e esbravejou — com uma cara de pau de deixar Lula roxo de inveja — que a investigação no STF seria "o território onde aflorariam as provas de sua inocência".

A partir de então, deu-se o que era previsto e esperado: o presidente empenhou sua alma imortal para impedir que a Câmara autorizasse o STF a processá-lo. Chegou-se a dizer que "o governo estava com os dias contados”, mas estamos no Brasil, onde é comum esses cagalhões se manterem na superfície, boiando como merda n'água, e terminarem melancolicamente suas desditosas gestões.

Em janeiro de 2019, após o maior estelionato eleitoral desde a reeleição de Dilma, a terrível, Temer transferiu a faixa presidencial à surreal combinação de Caixa de Pandora com os Cavaleiros do Apocalipse (PesteGuerraFome e Morte), eleito como solução "in extremis" para impedir que o país fosse governado por um criminoso condenado e preso. Mas a emenda ficou pior que o soneto, e o mau militar e parlamentar medíocre só continua à frente do Executivo graças à pusilanimidade e o espírito do corpo (ou porco?) dos Poderes Legislativo e Judiciário.

Sabíamos que nem a Velhinha de Taubaté esperaria grande coisa desse ser ignóbil, mas não se imaginava que tê-lo no comando da Nau dos Insensatos seria como enfrentar, a um só tempo e de uma só vez, as Sete Pragas do Egito.

Foi também em 2019 que o STF restabeleceu o império da impunidade sem que se ouvisse um único pio daquele que prometeu travar uma cruzada contra a corrupção.

Tampouco se insurgiu contra essa vergonha o superministro da Justiça, mas é preciso ter em mente que, se contrariasse o chefe, Moro seria prontamente exonerado. E como ele tinha um projeto (ou dois, melhor dizendo, pois Bolsonaro havia prometido indicá-lo para o STF), o ex-juiz da Lava-Jato passou os meses seguintes engolindo sapos e sorvendo a água da lagoa.

Paulo Guedes foi outra decepção, mas, de novo, seria injusto lhe atribuir toda a culpa, até porque integrar esse governo de merda exige dar o rabo e pedir desculpas por estar de costas.

Com o segundo ano de mandato de Jair Asmodeu Bolsonaro vieram a Covid, a demissão de Mandetta do Ministério da Saúde, a passagem-relâmpago de Teich e a subsequente militarização da pasta por um autoproclamado especialista em logística que não amarrava os próprios coturnos sem consultar seu dono (é simples assim, um manda e o outro obedece).

O desembarque de Moro resultou na abertura de um inquérito no STF para investigar a interferência do "mito" de pés de barro na PF, mas a subserviência do PGR, os constantes afastamentos e subsequente aposentadoria do ministro Celso de Mello e a nomeação de um pau mandado para preencher sua vaga não colaboraram para que coelhos saíssem daquele mato.

No que tange às agruras trazidas por 2021, a história foi escrita tão recentemente que a tinta ainda nem secou, e modo que encerro esta bagaça com um texto que Dora Kramer publicou em sua coluna no apagar das luzes de 2020.

Nos últimos acordes do atípico ano de 2020 o senso comum lançou em toda parte um sonoro “já vai tarde”, tentando semear a esperança de que tudo será melhor em 2021. Que será, será, mas não necessariamente muito diferente, pois problemas não caminham sozinhos nem são subservientes ao calendário. Continuam aí, embora o mundo já receba, do esforço universal tão inédito quanto espetacular dos cientistas, instrumentos para enfrentar o maior deles a golpes de vacinas.

Para tudo, porém, há um contraponto. A pandemia tirou as coisas dos eixos tais como vinham girando até que um morcego do outro lado do planeta pusesse a humanidade à prova, entregue ao desafio de encontrar novos ou reencontrar antigos pontos de equilíbrio. A disfunção é universal e cada país ainda tem adversidades específicas — decorrentes voluntária e involuntariamente da ofensiva do vírus — para administrar.

Os Estados Unidos, por exemplo, livraram-se de uma dessas circunstâncias que deram um trabalho enorme: um presidente criador de casos, cujos métodos contribuíram ao longo do ano para o desvio do combate à crise sanitária.

Por aqui, junto com cargas pesadas a carregar e sapos robustos para engolir, temos esse tipo de governante, só que ainda com dois anos de mandato pela frente e sem dar sinal de que pretenda parar de criar caso com tudo e todos que lhe contrariem a ilusão de poder absoluto.

Bolsonaro perdeu e continua perdendo todas as tentativas de dar contornos reais ao devaneio de mandar porque pode e daí fazer todos obedecer por ser, na visão dele, providos de juízo. Tenta compensar no grito as perdas que acumula no Judiciário, no Legislativo, na comunidade científica, entre governadores, na sociedade organizada (e na desorganizada também), na imprensa, nos desmentidos que lhe impõem os fatos.

Muito embora a banda da democracia não toque ao ritmo de marcha militar, o general da banda ganhou algumas paradas ao custo de enormes prejuízos ao país, levando-nos a perder lugar de destaque e respeito mundiais na cultura, no trato do meio ambiente, na diplomacia e, mais recente e de modo especialmente danoso, na política de imunização construída em bases exitosas nas últimas quatro décadas. Um legado que vai muito além de 2020, cuja marca foi a da ineficiência.

O que esperar então do amanhã mais imediato? O presidente continuará nessa toada de cavar chances para celebrar aqui e ali “mais uma que o Bolsonaro ganhou”, pouco se importando com o destino do coletivo. E o Brasil social e institucionalmente do outro lado seguirá empreendendo um esforço enorme para reagir e resistir às investidas... nem vou dizer contra a democracia por se tratar de uma ação inexequível, mas contra a normalidade da vida e da relação do governante com seus governados.

É toda hora uma declaração estapafúrdia ou uma ação descolada da realidade, coisas que exigem a mobilização de uma energia brutal dedicada ao acessório que, no entanto, se torna essencial porque não se pode deixar passar certas atitudes sob o risco de lá na frente o preço a pagar ficar muito mais alto.

Esse passivo particularmente brasileiro é que vamos carregar neste momento em que o combate da pandemia já não é uma hipótese, mas uma situação concreta na qual seria indispensável contar com uma governança concentrada na emergência. O plano anunciado é difuso. Os 20 bilhões de reais de aporte anunciados não ajudam quando se tem um presidente que põe dinheiro, mas não impõe moral e desqualifica a vacinação e se mostra incapaz de imunizar a população, a coisa tende a não funcionar.

Problema ainda agravado por dificuldades como a queda de renda dos mais pobres, a incerteza sobre o andamento dos trabalhos no Congresso para o que é fundamental na economia, a redução de leitos disponíveis seja pelo receio de se retomarem os hospitais de campanha devido às falcatruas ocorridas e/ou da necessidade de atendimento de doenças cuja demanda ficou reprimida pela prioridade dada à Covid.

Isso sem falar nos efeitos crescentes da tensão pré-eleitoral em cujas águas o presidente candidato à reeleição navega em clima de tormenta, donde a tendência de seus pretensos oponentes será a do jogo pesado, tendo a vacina como centro. Mas essa é outra história. Por ora, fica o desejo: que a realidade supere as más expectativas e tudo corra bem no ano que vem.

Como se vê, pouca coisa mudou de lá para cá. Talvez algumas moscas, mas a merda continuou basicamente a mesma. Que tudo realmente melhore em 2022. Afinal, para sonhar não se paga imposto. 

Ainda.