Há uma parte da população do Rio de Janeiro que sempre
construiu para si própria, e para o restante do Brasil que presta atenção no
que se fala ali, uma imagem de sua cidade como o centro nacional e mundial da
malandragem. Seria uma grande virtude. Esse “espírito”, na sua maneira de ver
as coisas, faz do Rio uma cidade superior às demais. Faz de seus cidadãos
pessoas mais inteligentes, mais aptas a lidar com a vida e mais hábeis que os
outros brasileiros em conseguir o melhor para si próprias.
Imagina-se que essa
gente esteja sobretudo nos morros, ou nas “comunidades”, como se deve dizer
hoje. Muitos de fato estão, mas não são eles os que mais aparecem, pois sua voz
não vai longe. Quem realmente leva adiante esta bandeira é uma porção das
classes mais ou menos médias da Zona Sul, com a participação decisiva dos
artistas, intelectuais que assinam manifestos, formadores de opinião,
“influencers”, comunicadores e por aí afora. São eles, hoje, os guardiães da
filosofia segundo a qual qualificar-se como “malandro” é um dos maiores dons
que um ser humano pode dar a si próprio. Já sua pior desgraça, motivo de
vergonha e prova cabal de estupidez, é ser o exato contrário disso ― o otário,
condenado a passar a vida na humilhação, no logro e no “prejuízo”. Seja tudo no
Rio; mas não seja, pelo amor de Deus, um “otário”.
A música de sucesso no Rio de Janeiro neste fim de ano é
“Vai, Malandra”. Comentaristas de futebol, a começar dos mais populares, mais
uma vez apostam que a “malandragem natural” do jogador brasileiro de futebol
será uma vantagem estratégica importante na Copa do Mundo de 2018 na Rússia. Os
políticos da cidade e do Estado são descritos, com orgulho, como “malandros”.
Nas artes e naquilo que se chama de “meio cultural” a figura do malandro, e a
filosofia que se fabrica em torno de seus méritos, estão entre os temas
principais de interesse. A palavra “malandro”, em suma, é um elogio. A palavra
“otário” é um insulto.
Não melhora as coisas em nada, obviamente, a ideia geral que
associa o otário ao sujeito honesto, cumpridor da própria palavra e das leis,
pagador de impostos, respeitador das regras do trânsito, bem-educado, etc. ―
tudo isso, cada vez mais, passa a ser visto como uma fraqueza, além de burrice,
falta de “jogo de cintura” e outros delitos graves. Um cidadão decente, neste
clima, é um cidadão com defeito.
A atitude de culto à “malandragem” não parece estar dando
bom resultado na vida prática do Rio de Janeiro. Até outro dia, três
ex-governadores do Estado estavam na cadeia, ao mesmo tempo, por corrupção – um
deles, que não teve a sorte de pegar um Gilmar
Mendes no caminho, continua no xadrez. Nenhum outro Estado do Brasil, em
nenhuma época da história, conseguiu nada semelhante.
O ano de 2017 se despediu com mais de 130 policiais
assassinados no Rio, uma média de um morto a cada três dias. Os funcionários
públicos já esqueceram o que é receber o salário mensal em dia. Foi preciso
pedir dinheiro emprestado para pagar o décimo terceiro. Um dos maiores orgulhos
da cidade e do Brasil, o estádio do Maracanã, continua fechado depois de
consumir bilhões de reais em investimentos para brilhar nos Jogos
Pan-Americanos, depois na Copa do Mundo de 2014 e finalmente na Olimpíada de
2016, uma coisa depois da outra. O Flamengo, o maior time do Rio, manda seus
jogos num lugar chamado “Ninho do Urubu”. Nada disso tem cara de ser,
realmente, uma grande malandragem.
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