domingo, 12 de junho de 2022

DE PAI PARA FILHO

 


O ex-presidente Lula costumava contar uma história de como seu pai, uma vez, lhe negou um sorvete. A recusa o teria ferido profundamente. Só um pai insensível poderia ignorar o desejo de um filho. Mas a questão que se coloca é a seguinte: se você um dia se tornasse prefeito, governador ou presidente, qual o tamanho do sorvete que daria a seu rebento? Ou será que você, respeitando as exigências de um cargo público, apenas ajudaria o seu filho no papel de pai? Se for assim, haveria nisso uma questão ainda mais complexa: e se, como pai, surgisse a oportunidade de arrumar uma “colocação”, um “bico” ou uma “boca” para o filho? Haveria como evitar que o filho fosse nomeado por meio de recursos que o pai, legitimamente eleito, controla? Ou impedir que o filho, de repente, tivesse sua punição aliviada após cometer algum malfeito?

 

Há em todos esses confrontos e dilemas uma reflexão que raramente é feita e que se encontra na intersecção entre o mundo da casa e o da rua. O mundo da casa é aquele das relações entre parentes próximos. Todos nós que vivemos em família temos de cumprir com uma série de obrigações morais, as quais são pouco faladas, mas muito praticadas. O mundo da rua é aquele da sociedade, em que vicejam inúmeras regras que exigem anonimato, neutralidade e isenção.

 

Mesmo para aqueles mais felizes com suas famílias, o mundo da casa é uma obrigação que, às vezes, precisa ser cumprida com sacrifício ou com dor, como ocorre nas festas de aniversário e, sobretudo, nas de casamento. Nessas últimas, eu — por exemplo — dei mais do que podia. Em uma delas, um dos meus irmãos, preocupado com a abundância do uísque, chamou-me de lado e perguntou se eu tinha feito alguma falcatrua. Mas não pense que ele estava buscando algo errado. Se eu tivesse mesmo feito algo irregular, isso seria plenamente justificado, porque teria sido para uma filha querida.

 

Esse é o mundo da casa. Quem o inventou foram os velhos reis, que perderam a cabeça em seus reinados, mas deixaram o legado das “obrigações de família”, que batiam em seus corações.

 

A aristocracia é fundada justamente nesse “direito” de herdar dos pais. Um bom brasileiro não pode negar o que tem — seja um objeto ou uma capacidade, como um nome honrado — a um filho. Seria algo condenável. Esse raciocínio no Brasil vale tanto para o mundo da casa quanto para o mundo da rua. Na nossa “consciência cívica” nacional, as normas sagradas do ambiente doméstico não foram neutralizadas como deveriam. Há, pelo contrário, uma personalização de tudo, e aqueles que ocupam cargos públicos continuam seguindo as mesmas regras da casa.

 

Uma das maiores contradições do mundo “político nacional” é essa oposição entre os deveres da família e da casa, os quais cada pai ou mãe escolhe seguindo uma tradição, e a impessoalidade obrigatória contida nos cargos públicos. Como é possível ser presidente da República e não “arrumar” algo para seus filhos, cunhado, sobrinhos e tios? Uma vez, um prefeito de Magé, na Baixada Fluminense, nomeou sete parentes dizendo que eram pessoas de confiança. Também já tivemos um presidente ocasional que simplesmente nomeou toda a sua família. Seu nome era José Linhares, que governou durante apenas três meses, em 1945. Em sua época, criou-se até um dito popular: “Os Linhares? Ah! São milhares”.

 

É preciso uma revisão profunda desses costumes que são tidos como “naturais”, como inocentes e até mesmo como “bíblicos”. Não podemos seguir pensando que “farinha pouca, meu pirão primeiro” e, assim, empregar os familiares mais próximos em bons cargos.

 

Sociólogos clássicos, como Maria Isaura Pereira de Queiroz, chamaram esse fenômeno de “filhotismo”. Outros, como Gilberto Freyre, mencionaram o âmbito poderoso da “casa” — sobretudo da casa-grande — sobre a senzala. Eles não deixaram de tocar no ponto de que, na nossa sociedade, obrigações de carne e sangue, da amizade e do parentesco eram consideradas “sagradas” e bloqueavam ou impediam as normas impessoais do mercado e das leis.

 

A busca de um “pai da pátria”, um rei populista forte, é nada mais que um modo de tentar resolver essa luta entre a casa e a rua. O que é pessoal, no final, acaba prevalecendo sobre o impessoal. Enfrentar esse problema seria importante para resolver nossa desigualdade aviltante, que também tem suas origens em um familismo que desmoraliza todas as ideologias.

 

Até lá, seguiremos fabricando leis e ficções legais para beneficiar parentes, amigos e correligionários. Continuaremos demitindo juízes e procuradores para proteger nossos filhos. São essas coisas que nutrem as dinastias políticas, que crescem e se solidificam num entorno profundamente antidemocrático e desigual. Não foi por acaso que o escritor Luis Fernando Veríssimo chamava o governo atual de “Bolsonaro & filhos”, uma brincadeira com mais essa dinastia nacional.

 

Honestamente, não sei qual é a melhor maneira de sanar o filhotismo. Afirmo, porém, que países nos quais o espaço público tem leis que valem para todos são nações onde reina o cidadão, não o súdito. É esse o caso dos Estados Unidos, onde o puritanismo individualista, a ausência de uma religião oficial e de um escravismo em escala nacional fizeram com que as regras da casa se conjugassem melhor com as da rua.

 

Enquanto no Brasil impera a ideia de que a lei deve proteger um clube de privilegiados, que frequentemente ameaçam os demais com a frase “você sabe com quem está falando”, a democracia americana foi fundada na percepção de que quanto menos governo, melhor, e que todos devem ter igualdade de condições. Foram essas qualidades que tanto impressionaram o francês Alexis de 

Tocqueville, ao viajar pelos Estados Unidos em meados do século XIX.

 

Seria então o filhotismo o nosso enorme e invisível entulho que nos impede de ter um estilo de vida mais igualitário e mais democrático? Se continuarmos sem criticar honesta e profundamente os nossos costumes mais “inocentes”, esse jogo decepcionante jamais acabará.

 

Com Roberto Damatta