quinta-feira, 16 de abril de 2020

SOBRE A COVID-19 E O MONITORAMENTO DOS SMARTPHONES

NÃO SE COMBATE A HIDROFOBIA PRENDENDO O CÃO DANADO NA CORRENTE. É PRECISO SACRIFICÁ-LO.

Resolvi interromper a sequência que vinha publicando (sobre Home Office) para tratar,  em duas ou três postagens, de um assunto igualmente relevante, talvez até mais relevante, na medida em que trata-se da nossa privacidade. Sem mais delongas, vamos ao que interessa.

Segurança e comodidade não são conceitos mutuamente excludentes, mas o fato é que dificilmente andam de mãos dadas (não faltam exemplos, aqui no Blog, que abonam essa tese). A Internet potencializou os riscos de infecção por pragas digitais e invasões virtuais, bem como facilitou enormemente a ação de cibercriminosos. E a situação se agravou ainda mais depois que os (hoje onipresentes) celulares se tornaram inteligentes (smart). Primeiro, porque smartphones são computadores como seus irmãos maiores (desktops e notebooks) e, portanto, sujeitos a rodar programas maliciosos; segundo, porque suas dimensões reduzidas facilitam o transporte e utilização em praticamente qualquer lugar.

Vale enfatizar que o perigo aumenta exponencialmente quando se utiliza uma conexão via redes Wi-Fi públicas (como as de aeroportos, restaurantes, shoppings, hipermercados, consultórios etc.) para realizar transações bancárias, pagar contas, fazer compras virtuais e navegar por webservices que exigem login com nome de usuário e senha. Portanto, procure sempre usar a rede wireless de casa; na impossibilidade, recorra à conexão 3G/4G disponibilizada pelo seu aparelho, a despeito do impacto dessa modalidade de conexão no pacote de dados contratado com sua operadora (assunto que também já foi abordado em outras oportunidades; a quem interessar possa, basta fazer uma busca usando o campo “Pesquisar este blog”, na parte inferior da coluna à direita).

Com a pandemia do coronavírus, surgiu um novo vetor de insegurança: a geolocalização. Explico: visando prevenir o colapso do sistema de saúde, o governo estabeleceu medidas restritivas, como o isolamento social (que apresenta bons resultados quando a população segue as instruções à risca). 

Dada a dificuldade de fiscalizar o cumprimento de medidas como essa num país de dimensões continentais e população de 212,3 milhões de habitantes — gente das mais variadas etnias e graus de escolaridade, condições socioeconômicas, visão de mundo e até “dialetos” diferentes (volto a essa questão numa próxima oportunidade) — a solução foi obter, junto às principais operadoras, dados sobre a localização dos aparelhos (vale lembrar que há no Brasil, em média, 1,3 celular ativo por habitante).

Na medida em que os usuários não são identificados individualmente, ou pelo menos é isso que afirmam os responsáveis, não há que falar em invasão de privacidade. Todavia, há quem considere a medida preocupante, dada sua semelhança com o que é feito em países comunistas (notadamente a China), onde o governo utiliza reconhecimento facial para conseguir vigilância total em seu território. Na Coréia, o monitoramento foi tão profundo que era possível até mesmo identificar se a pessoa havia cruzado com algum infectado pelo coronavírus em seu caminho rotineiro.

A advogada Aline Zinni, do Kasznar Leonardos, compara a geolocalização ao envio de uma encomenda por SEDEX — no qual o pacote pode ser rastreado, mas seu conteúdo permanece em sigilo — e defende o uso de dados e das tecnologias disponíveis no combate à disseminação do COVID-19desde que restrita à informação sobre o deslocamento de telefones celulares com base na triangulação de antenas (raio de 200 m), de modo a impedir a identificação do assinante (em tese, é possível refinar a triangulação a ponto de localizar o aparelho com margem de erro de alguns centímetros).

Ainda segundo Zinni, a Constituição Federal (artigo 5°, XII) protege a inviolabilidade da comunicação que contenha dados, mas não os dados em si. No caso do compartilhamento de forma resumida ou estatística, não há exposição do indivíduo. Além disso, o Marco Civil da Internet corrobora a proteção constitucional em seu artigo 7, III, e a Lei Geral de Proteção de Dados (que ainda não entrou em vigor), exclui do seu escopo os dados anonimizados, ou seja, se não identifica ou não se pode identificar um indivíduo, então esses dados não são considerados dados pessoais e, portanto, não estariam sujeitos às restrições impostas pela lei. (Volto a essa discussão na próxima postagem).

Lauro Jardim publicou em sua coluno em O GLOBO que Bolsonaro vetou o monitoramento por geolocalização. O pedido de suspensão foi feito no sábado, 11, quando as operadoras de telefonia já estavam avançadas com o projeto e haviam enviado um memorando de entendimento para Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Segundo o presidente, há riscos para a privacidade dos brasileiros, apesar de um parecer da AGU aprovar o uso da ferramenta proposta pelas teles.

A geolocalização de celular já vinha sendo utilizada em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na Cidade Maravilhosa, o rastreamento realizado em parceria com a TIM evidenciou que na Rocinha, por exemplo, foram detectados 4.960 celulares ligados em um mesmo ambiente, no último sábado, por volta das 23h00 — o dobro do número registrado da semana anterior. Em Rio das Pedras, zona oeste da cidade, foram identificadas 10,6 mil pessoas em um único local. Considerando que esses números foram apurados a partir de dados fornecidos por uma única operadora, somados aos das demais, é bem provável que a quantidade de pessoas que estão descumprindo o isolamento seja muito maior.

Em São Paulo, o monitoramento engloba informações das quatro operadoras (VIVO, CLARO, TIM e OI). Segundo João Doria, o sistema começou a ser testado na quarta-feira, 8, e o governo não tem acesso aos números dos celulares, apenas às localizações. Também são fornecidos mapas às prefeituras de cidades com mais de 30 mil habitantes. "As operadoras vão passar a monitorar o isolamento no estado de São Paulo durante a quarentena (que acaba em 22 de abril)", afirmou o governador em coletiva de imprensa. Também segundo o tucano, a estratégia é efetiva quando atinge uma taxa superior a 70%. No domingo 5, o índice chegou ao seu ápice, com 59% da população, mas voltou a cair ao longo da semana.