Resolvi interromper a sequência que vinha publicando (sobre Home Office) para tratar, em duas ou três postagens, de um assunto igualmente relevante, talvez até mais relevante, na medida em que trata-se da nossa privacidade. Sem mais delongas, vamos ao que interessa.
Segurança e comodidade não são conceitos mutuamente excludentes, mas o fato é que dificilmente andam de mãos dadas (não faltam exemplos, aqui no Blog, que abonam essa tese). A Internet potencializou os riscos de infecção por pragas digitais e invasões virtuais, bem como facilitou enormemente a ação de cibercriminosos. E a situação se agravou ainda mais depois que os (hoje onipresentes) celulares se tornaram inteligentes (smart). Primeiro, porque smartphones são computadores como seus irmãos maiores (desktops e notebooks) e, portanto, sujeitos a rodar programas maliciosos; segundo, porque suas dimensões reduzidas facilitam o transporte e utilização em praticamente qualquer lugar.
Vale enfatizar que o perigo aumenta exponencialmente quando se utiliza uma conexão via redes Wi-Fi públicas (como as de aeroportos, restaurantes, shoppings,
hipermercados, consultórios etc.) para realizar transações
bancárias, pagar contas, fazer compras virtuais e navegar por webservices que
exigem login com nome de usuário e senha. Portanto, procure sempre
usar a rede wireless de casa; na impossibilidade, recorra à conexão 3G/4G
disponibilizada pelo seu aparelho, a despeito do impacto dessa modalidade de
conexão no pacote de dados contratado com sua operadora (assunto que também já foi abordado em outras
oportunidades; a quem interessar possa, basta fazer uma busca usando o campo “Pesquisar este blog”, na parte inferior
da coluna à direita).
Com a pandemia do coronavírus, surgiu um novo vetor de
insegurança: a geolocalização. Explico: visando prevenir o colapso do sistema
de saúde, o governo estabeleceu medidas restritivas, como o isolamento social (que
apresenta bons resultados quando a população segue as instruções à risca).
Dada
a dificuldade de fiscalizar o cumprimento de medidas como essa num país de dimensões continentais e
população de 212,3 milhões de habitantes — gente
das mais variadas etnias e graus de escolaridade, condições socioeconômicas,
visão de mundo e até “dialetos” diferentes (volto a essa questão numa próxima
oportunidade) — a solução foi obter, junto às principais operadoras, dados sobre a localização dos aparelhos (vale lembrar que há no Brasil, em média, 1,3 celular ativo por habitante).
Na medida em que
os usuários não são identificados individualmente, ou pelo menos é isso que afirmam os responsáveis, não
há que falar em invasão de privacidade. Todavia, há quem considere a medida
preocupante, dada sua semelhança com o que é feito em países comunistas
(notadamente a China), onde o governo utiliza reconhecimento facial
para conseguir vigilância total em seu território. Na Coréia, o monitoramento foi tão
profundo que era possível até mesmo identificar se a pessoa havia cruzado com
algum infectado pelo coronavírus em seu caminho rotineiro.
A advogada Aline Zinni, do Kasznar Leonardos, compara a geolocalização ao envio de uma
encomenda por SEDEX — no
qual o pacote pode ser rastreado, mas seu conteúdo permanece em sigilo — e
defende o uso de dados e das tecnologias disponíveis no combate à disseminação
do COVID-19, desde que
restrita à informação sobre o deslocamento de telefones celulares com base na
triangulação de antenas (raio de 200 m), de modo a impedir a
identificação do assinante (em tese, é possível refinar a triangulação a
ponto de localizar o aparelho com margem de erro de alguns centímetros).
Ainda segundo Zinni, a Constituição Federal (artigo 5°, XII) protege a
inviolabilidade da comunicação que contenha dados, mas não os dados em si. No
caso do compartilhamento de forma resumida ou estatística, não há exposição do
indivíduo. Além disso, o Marco
Civil da Internet corrobora a proteção constitucional em seu artigo 7,
III, e a Lei Geral de Proteção de
Dados (que ainda não entrou em vigor), exclui do seu escopo os dados
anonimizados, ou seja, se não identifica ou não se pode identificar um
indivíduo, então esses dados não são considerados dados pessoais e, portanto,
não estariam sujeitos às restrições impostas pela lei. (Volto a essa discussão na próxima postagem).
Lauro Jardim publicou em sua coluno em O GLOBO que Bolsonaro vetou o monitoramento por geolocalização. O pedido de
suspensão foi feito no sábado, 11, quando as operadoras de telefonia já estavam
avançadas com o projeto e haviam enviado um memorando de entendimento para Marcos Pontes, ministro da Ciência,
Tecnologia, Inovações e Comunicações. Segundo o presidente, há riscos para a
privacidade dos brasileiros, apesar de um parecer da AGU aprovar o uso da ferramenta proposta pelas teles.
A geolocalização de celular já vinha sendo utilizada em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na Cidade
Maravilhosa, o rastreamento realizado em parceria com a TIM evidenciou que na Rocinha,
por exemplo, foram detectados 4.960 celulares ligados em um mesmo ambiente, no último sábado, por
volta das 23h00 — o dobro do número registrado da semana anterior. Em Rio das
Pedras, zona oeste da cidade, foram identificadas 10,6 mil pessoas em um único
local. Considerando que esses números foram apurados a partir de dados fornecidos por uma única operadora, somados aos
das demais, é bem provável que a quantidade de pessoas que estão descumprindo o isolamento seja muito maior.
Em São Paulo, o monitoramento engloba informações das quatro operadoras (VIVO, CLARO, TIM e OI). Segundo João Doria, o sistema começou a ser testado na quarta-feira, 8, e o
governo não tem acesso aos números dos celulares, apenas às localizações.
Também são fornecidos mapas às prefeituras de cidades com mais de 30 mil
habitantes. "As operadoras vão passar a monitorar o isolamento no
estado de São Paulo durante a quarentena (que acaba em 22 de abril)",
afirmou o governador em coletiva de
imprensa. Também segundo o tucano, a estratégia é efetiva quando atinge uma taxa
superior a 70%. No domingo 5, o índice chegou ao seu ápice, com 59% da
população, mas voltou a cair ao longo da semana.