Peguemos nossa máquina do tempo e teletransportemo-nos do
século XVI — quando os lusitanos botaram as patas na terra do pau-brasil, até o ano
de 1808 — quando a Família Real Portuguesa, ameaçada pelo Tratado de
Fontainebleau, mudou-se de mala e cuia para sua colônia, que então foi
promovida de a Reino Unido. Feita essa breve escala, avancemos até o final de agosto de 1822, semanas antes do célebre “Grito do Independência” — que Pedro Américo imortalizou em seu tão célebre quanto fantasioso quadro, cuja reprodução ilustra esta postagem, e que Evaristo da Veiga poetizou, no Hino da Independência, aludindo à ruptura
dos grilhões que nos forjava da perfídia astuto ardil.
Em agosto de 1822, o príncipe regente D. Pedro
deslocou-se à província de São Paulo para acalmar a situação, depois
de uma rebelião contra José Bonifácio. No dia 7 de setembro, voltando de Santos (SP), sua alteza recebeu três cartas. Uma, com ordens de seu pai
para que retornasse a Portugal e se submetesse ao rei e às Cortes. Outra, do
próprio Bonifácio, que o aconselhava a romper com Portugal, e a terceira,
de sua esposa, Maria Leopoldina de Áustria, apoiando a decisão do ministro e
advertindo: "O pomo está maduro, colhe-o já, senão apodrece."
Impelido pelas circunstâncias, D. Pedro teria desembainhado
a espada e rompido os laços de união política com Portugal com a célebre frase
"Independência ou Morte!" (menos de 1 mês depois ele foi
aclamado imperador do Brasil, com o título de D. Pedro I, e coroado em 1
de dezembro na Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo, no Rio
de Janeiro, então capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarves, mas isso não vem ao caso para o escopo desta abordagem).
A representação dos intrépidos viajantes na obra do ilustre
pintor — que poderia ser apreciada ao vivo e em cores se o Museu do Ipiranga
não estivesse fechado
ao público desde 2013 (para obras de restauro e modernização que certamente
estarão datadas quando e se forem concluídas e o museu, reaberto um dia) —, trajando
vistoso uniformes de gala e montados em garbosos puros-sangues, não condiz com
a realidade. Talvez porque o quadro foi encomendado para retratar a
independência do Brasil como um ato heroico, como se a iniciativa tivesse
surgido da necessidade de se construir uma nação. Não foi bem isso, mas esses
detalhes não vêm ao caso para os efeitos desta análise.
D. Pedro e distinta comitiva (não mais que uma dezena
de pessoas) montavam mulas, e não os cavalos, já que a viagem era longa e
boa parte dela era feita pela Serra do Mar, o que demandava montarias fortes e resistentes,
e não simplesmente elegantes. Também por isso sua alteza e companhia estavam
suados, sujos e amarfanhados. O rio Ipiranga não passava de um córrego, e “grito”
não se deu exatamente às suas margens, mas numa colina que ficava nas
imediações. E o local não foi escolhido por ser bucólico e servir de pano de
fundo para a efeméride — o préstito imperial só parou ali para que D. Pedro,
acometido de poderosa caganeira, pudesse aliviar os intestinos. E já que estava “soltando um barro”, sua alteza soltou também
o histórico grito da independência.
A proclamação da República é outro episódio da nossa história que, devidamente despido do glamour fantasioso atribuído pelos livros didáticos, não passou de um golpe de Estado político-militar que pôs fim à monarquia constitucional parlamentarista do Império, apeou do trono D. Pedro II e implementou o presidencialismo republicano como forma de governo. Vejamos isso em detalhes.
A proclamação da República é outro episódio da nossa história que, devidamente despido do glamour fantasioso atribuído pelos livros didáticos, não passou de um golpe de Estado político-militar que pôs fim à monarquia constitucional parlamentarista do Império, apeou do trono D. Pedro II e implementou o presidencialismo republicano como forma de governo. Vejamos isso em detalhes.
Meses após o Marechal Deodoro da Fonseca proclamar a República, o Brasil já conhecia a primeira crítica articulada sobre o processo
que havia removido a monarquia do poder: o livro Fastos da Ditadura
Militar no Brasil, escrito em 1890 pelo advogado paulistano Eduardo
Prado, que foi o primeiro autor a considerar a Proclamação da República um
"golpe de Estado ilegítimo" aplicado pelos militares.
Na visão do empresário Luiz Philippe de Orleans e
Bragança, tataraneto de D. Pedro II e militante do movimento de
direita Acorda Brasil "a proclamação foi um golpe de uma minoria
escravocrata aliada aos grandes latifundiários, aos militares, a segmentos da
Igreja e da maçonaria. O que é fato notório é que foi um golpe ilegítimo".
Sua tese é esposada pelo historiador José Murilo de Carvalho, autor do
livro O Pecado Original da República (editora Bazar do Tempo).
O jornalista e historiador José Laurentino Gomes,
autor da trilogia 1808, 1822 e 1889, concorda com a leitura do “golpe”,
mas pondera que o debate sobre a legitimidade da República é sobre "quem
legitima o quê", o que está ligado ao processo de consolidação de qualquer
regime político. Segundo ele, a questão envolve a luta pelo direito de nomear
os acontecimentos históricos que, no caso dos republicanos, conseguiram
emplacar a ideia de "proclamação" e não de "golpe". "O
que aconteceu em 1889, em 1930 e em 1964 é a mesma coisa: exército na rua
fazendo política. Depende de quem legitima o quê. O movimento de 1964 não foi
legitimado pela sociedade, mas a revolução de 1930 o foi tanto pelos sindicatos
quanto pelas mudanças promovidas por Getúlio Vargas. A proclamação é contada
hoje por quem venceu", argumenta.
Já o historiador Marcos Napolitano, professor da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade da USP,
assevera que é possível, sim, falar em golpe na fundação da República, mas
questionar sua legitimidade, como faz Orleans e Bragança, seria um
revisionismo histórico incabível. "Se pensarmos que a monarquia era
um regime historicamente vinculado à escravidão (esta sim, uma instituição
ilegítima, sob quaisquer aspectos), acho pessoalmente que a fundação da
República foi um processo político legítimo que, infelizmente, não veio
acompanhado de reformas democratizantes e inclusivas", explica.
Resumo da ópera:
Com o fim do governo provisório e a
promulgação da Constituição Republicana de 1891, o Congresso Nacional
guindou o marechal Deodoro da Fonseca à presidência da República Velha —
ou República das Oligarquias. Ou seja: a primeira república
tupiniquim começou com um golpe militar, e o primeiro presidente, também militar,
foi eleito indiretamente e “convidado” a deixar o cargo pelas Forças Armadas cerca de 2 anos depois.
Ao longo de 130 anos de história republicana, o Brasil teve até hoje 35
presidentes, que chegaram ao poder pelo voto popular, por eleição indireta, via
linha sucessória ou por golpe de Estado. Oito deles, a começar por Deodoro
da Fonseca, foram de alguma maneira apeados do poder. E como o que
começa mal tende a piorar, a possibilidade de o atual inquilino do Palácio do Planalto sofrer uma ação de despejo são reais. E, cá entre nós, já está mais que na hora.
Continua...