Agora que Donald Trump parece disposto a fechar um capítulo (“A Presidência”) para abrir outro (“A Vingança”), o auditório que o detesta continua a olhar para a criatura sem a conseguir explicar. Um populista, um ditador, um fascista. Ou, em linguagem psiquiátrica, um narcisista, um esquizoide, um psicopata. Curiosamente, ou talvez não, o mundo olha para Trump como normalmente olhamos para os melhores vilões do cinema: com ansiedade e repulsa. Quando será que o prendem? Quando será que o matam?
A diferença, a grande diferença entre o cinema e a vida real,
é que a “suspensão da descrença” é temporária quando vemos um filme. No caso de
Trump, essa suspensão é permanente. De tal forma que tomamos a ficção por
realidade. Um erro, avisa Bruno Maçães, autor do mais original e
estimulante ensaio que li esse ano sobre a América contemporânea: History
Has Begun: The Birth of a New America (Oxford University Press, 248
páginas). Entender Trump implica perceber que aquilo já é outra coisa.
Mas que coisa?
Para responder à pergunta, Maçães começa pelo
princípio. Ou, melhor dizendo, pelo falso princípio da república americana:
quando os “pais fundadores” disseram adeus à Europa, esse adeus foi limitado.
Os alicerces dos Estados Unidos eram ainda reconhecidamente europeus,
iluministas, liberais. Mas essa casca europeia foi sendo rachada e abandonada,
não apenas pela dinâmica interna da nova nação e das novas gentes que a
habitavam e recriavam, mas pelas trágicas contingências da história.
No século 20, a grande civilização europeia suicidava-se em
Verdun e em Auschwitz. Os Estados Unidos, que eram já a potência econômica
dominante em inícios da centúria, tornaram-se a superpotência. Uma
superpotência contestada pela alternativa comunista até 1989 e incontestada
depois da dissolução da União Soviética — pelo menos, até à emergência da
China.
Pois bem: se a Europa, carregada de passado, procurou
reconstruir-se no pós-Segunda Guerra sobre princípios mais sólidos (a União
Europeia é o arranjo arquitetônico que saiu das ruínas), os Estados Unidos, na
interpretação de Maçães, optaram por um outro caminho: não o de se
conformarem com a realidade, mas o de escaparem à realidade, criando novas
realidades. Dito de outra forma: para que viver nos limites estreitos do
roteiro liberal quando é possível escrever outros roteiros e até transformar a
vida num
Essa evasão existencial não poupou a política e os seus
líderes. Pelo contrário: como afirmava Ronald Reagan, citado no livro,
era inconcebível que alguém chegasse à Casa Branca sem ter sido ator primeiro.
Escusado será dizer que, depois de Reagan, atores não faltaram: uns
melhores (Obama), outros piores (Clinton) — até chegarmos ao
supremo entertainer: o Donald, claro.
E, com ele, vieram as cadências próprias de uma novela, com
a candidatura presidencial que ninguém levou a sério; a vitória sísmica; o
reinado de trevas; o impeachment que prometia derrubar o monstro; a
sobrevivência dele; um novo confronto épico com o “vírus chinês” que ele
desvalorizava; a recuperação heroica mesmo a tempo da eleição; e, finalmente, a
derrota, depois de um longo suspense. Ou, como nas melhores séries, ele pode
regressar para uma continuação?
O auditório reagiu a Trump com os instrumentos
tradicionais da política tradicional. Daí a terminologia – populista, fascista,
doente mental etc. – com que o velho mundo pretendia explicar o novo. Para Maçães,
nem tudo é mau nesse novo mundo. Nas relações internacionais, por exemplo, é de
saudar o abandono de um certo “imperialismo liberal” e a preferência por uma
ordem pluralista, em que o mais importante não é fazer do mundo uma cópia da
América, mas um lugar seguro para a América.
Pessoalmente, não estou tão convencido sobre as virtudes do
“princípio da irrealidade”, onde “tudo é possível, mas nada é verdadeiro”.
Nesses quatro anos, apesar do som e da fúria, tivemos sorte. Podemos não ter
sorte da próxima vez, sobretudo se a irrealidade transbordar de forma trágica
para o banal cotidiano em que vivemos. Como diria Woody Allen, podemos
não gostar muito da realidade, mas ela ainda é o único lugar onde podemos comer
um bom filé.
Seja como for, Maçães oferece a mais inventiva e
erudita explicação para o espetáculo que esteve em cena desde 2016. E que
continuará, com Trump e até com Joe Biden. Aliás, por falar em Biden,
onde é que eu já vi esse filme de um velho pistoleiro aposentado que é obrigado
a regressar à cidade para afastar o xerife corrupto? Vou perguntar a Clint
Eastwood.
Texto de João Pereira Coutinho, publicado em A
GAZETA DO POVO