Na edição nº 2718 de Veja (23/12/20), o jornalista e escritor Roberto Pompeu de Toledo, dono de uma pena admirável, despediu-se dos leitores da revista cuja última página abrilhanta desde outubro de 1991, em alguns períodos sozinho, noutros alternando com colegas igualmente brilhantes — como J.R. Guzzo, (que deixou Veja em outubro do ano passado) e Dora Kramer, para citar apenas os mais recentes.
Em sua derradeira coluna (na revista), o jornalista relembra dois textos. Um, de agosto de 2007, que começava assim: “Os distraídos
talvez ainda não tenham percebido, mas o Brasil acabou”. Seguia-se o
inventário dos infortúnios do momento. Outro, de 1º/11/2006, publicado logo em
seguida à eleição presidencial daquele ano, lamentava uma campanha em que “a
intolerância contaminou vastas fatias da população” e alertava contra a
divisão, “que leva as nações à perdição”, mas terminava com uma
nota otimista: “O Brasil continua”.
Segue a transcrição do texto:
A exposição no Palácio do Planalto do terno do presidente e
do vestido da primeira-dama no dia da posse ofereceu-nos uma prévia do que
poderá ser um futuro Instituto Jair Bolsonaro, moldado à semelhança do
Instituto Fernando Henrique Cardoso e do Instituto Lula. Em outra
sala seria exibida a biblioteca do agora ex-presidente, no esplendor de seus
dois volumes (O Imbecil Coletivo, de Olavo de Carvalho, e A
Verdade Sufocada, do coronel Brilhante Ustra, ambos com visível
maioria de páginas não visitada). Os filhos merecerão sala onde encontraremos
do boné “Trump 2020” de Eduardo aos diplomas de honrarias
concedidos por Flávio a ilustres milicianos.
José Simão disse tudo, na Folha: “Resumo
de 2020: a gente não merecia Bolsonaro e Covid ao mesmo tempo. Até no Egito foi
uma praga por vez!”. Bolsonaro e Covid são desgraças que
têm em comum nos ocupar a mente de forma obsessiva. Na cabeça vadia deste
colunista brotou até a visão do futuro Instituto Jair Bolsonaro. Felizes
são os americanos, que, ao se livrar de Trump, se livrarão de igual
fenômeno. “Um dos piores aspectos da Presidência Trump foi o modo como
ele consumiu todo o espaço de nossa banda larga mental, tornando impossível
pensar em outra pessoa ou outra coisa”, escreveu o colunista
(conservador) Bret Stephens, do The New York Times. Stephens
comparou o flagelo Trump a “um longo e doloroso acesso de soluços,
um mosquito que zumbe no ouvido quando se está a ponto de pegar no sono, um
alarme de carro que não para”.
Até da Covid, com as vacinas, os americanos ficaram
perto de se livrar. Bolsonaro as boicota. As perspectivas de ano novo
são de que, ao contrário do Egito, continuaremos a acumular pragas.
Para André Malraux, na escala do Recife de sua visita
ao Brasil, em 1959, “o Brasil é apenas um país improvável”. Para Paulo
Francis, é “um asilo de lunáticos onde os pacientes assumiram o
controle”. Em poucos dias já chamaremos de “o ano que vem”
aquele em que a improbabilidade lunática que habitamos comemorará dois séculos
de vida independente. Nesse tempo todo, o trabalho de construir um país foi
menor do que a fé na mágica que a entidade mitológica conhecida por “futuro”
pudesse operar. Ao segundo ano de vida independente do país (1823), o deputado Gomide
declarou à Assembleia Constituinte: “O Pará terá um dia a opulência da
Rússia; o Maranhão, a da Alemanha; Pernambuco, a da França; a Bahia, a da
Grã-Bretanha; esta (o Rio de Janeiro), a de toda a Itália; São Paulo, a da
Espanha; Santa Catarina será a nossa Irlanda; a parte meridional do Brasil
equilibrará, por si só, os Estados Unidos do Norte do nosso mundo, enquanto
Minas, compreendendo Goiás e Mato Grosso, será tão opulenta como é hoje a
Europa toda”. Ao 146º ano de vida independente (1968), o governador
paulista Abreu Sodré declarou, em solenidade na Unicamp: “Contrariaremos
as previsões de que no ano 2000 o Brasil ainda será um país subdesenvolvido”.
No 198º ano de vida independente (2020) toca o despertador
da realidade e nos damos conta de que o Brasil perdeu cinco posições, em índice
de desenvolvimento humano (IDH), na lista da ONU. Entre 189
países, passou do 79º lugar, em 2019, para o 84º neste ano. Vizinhos do Cone
Sul nos humilham: o Chile ocupa a 43ª posição, a Argentina, a 46ª e o Uruguai,
a 55ª.
Votos de sucesso e vida longa ao ilustre escriba — outro grande colunista que a revista Veja perdeu.