A dicotomia semeada décadas atrás pelo demiurgo de Garanhuns com seu abjeto "nós contra eles" se espalhou como metástase e alcançou os píncaros com a oposição do bolsonarismo boçal ao lulopetismo corrupto (como bem sabe quem "frequenta" redes sociais, onde fake news disputam espaço com toda sorte de vitupérios trocados entre defensores atávicos dos dois extremos do espectro político-ideológico).
Longe de mim defender a censura ou
seja lá o que for que impeça as pessoas de expressar livremente suas opiniões (afinal,
quem dá voz a burros não pode reclamar dos zurros). Mas para tudo deve haver
limites, e a polarização desbragada não é exceção, sobretudo quando ela chega ao ponto de criar um clima de incerteza que desestimula investimentos,
prejudica a formação de consensos mínimos para reformas e afeta o funcionamento das instituições e a governabilidade do país.
Estamos prestes a assistir mais dois dias de comícios, um “em defesa das liberdades” e outro “contra o fascismo”, num exercício de grandiloquência a gosto pela toxina política poucas vezes visto por estas bandas. O diabo é que a hiperpolarização transborda, inundando com a lógica da política as demais áreas da vida. As amizades, por óbvio, começam a balançar quando João vai à Paulista no dia 7 e a Catarina, no dia 12. Daí o traço do exagero. O debate feito à moda do espantalho. A ideia de que o outro lado é “inadmissível”, pois nós somos a “própria democracia”.
A polarização aguda está longe de ser um fenômeno da base da sociedade. Seu ecossistema é o da minoria barulhenta, que dá o tom do debate público, em especial na Internet. A democracia digital se tornou um gigantesco mecanismo de seleção adversa. Em vez de selecionar gente ponderada para liderar, disposta a gerar consensos e resolver problemas (pasmem: é para isso que a política foi inventada), tende a premiar o bufão ou o “grande moralista”. O senador que lacra na CPI, o deputado que bomba detonando o STF (achando que não acabará na cadeia) e assim por diante.
O resultado disso é a mediocrização do debate público. A
maioria dos temas importantes da vida pública não se encaixa na lógica do tudo
ou nada, e só ao pequeno mundo político interessa ir contra ou a favor de
alguma coisa apenas porque ajuda ou atrapalha o governo.
Há, em regra, boas razões a favor e contra qualquer política
relevante. Há ajustes a fazer e gente diferente a ser escutada. Mas a polarização
doentia expulsa a sutileza e a atenção a efeitos adversos de qualquer decisão
e, de quebra, torna boa parte da imprensa acrítica, ao confundir senso crítico
com a adoção de uma agenda política — que em geral se resume a variações sem
fim dos mesmos xingamentos.
A polarização obsessiva esgarça as instituições, mas é
essencialmente um tema da cultura política de nossas democracias. Vivemos em
paz, mas é a estética da guerra que parece dar o tom no atual cenário político.
Daí o interesse renovado pela obra de Carl Schmitt. Suas
construções sombrias, feitas nos anos difíceis que assistiram ao fim da República de
Weimar, parecem pairar sobre a política atual.
Da ideia de que a vida política “é a vida essencial”, a
descrença na suavidade e nas abstrações da democracia liberal advém a ideia de
que é a inimizade, e não o diálogo, que define o sentido da política. Nada das
palavras doces de Joe Biden sobre converter inimigos em adversários.
O elemento natural da política é a relação amigo-inimigo. Definimo-nos como
comunidade política, precisamente sabendo quem é nosso “outro”, e o limite
disso tudo é a guerra, não o direito.
A democracia liberal, nessa visão, com seu respeito ao
pluralismo, direitos individuais e toda a parafernália de freios e contrapesos,
torna-se algo como uma fantasia. É evidente que não estamos nesse ponto, entre
outras razões porque não estamos na Alemanha dos anos 30. Mas há nuvens no
horizonte.
Meio século depois da adesão de Schmitt ao nazismo, Norberto Bobbio
fazia uma conferência em Milão sobre a Mitezza — a serenidade ou
“moderação” como a virtude desejável na democracia. Seu argumento, depois
transformado em livro, prefaciava um tempo em que não há mais tiroteios pelas
ruas, mas os modos da guerra, seus jeitos e sua intolerância, pareciam
sobreviver. E isso não era bom. Daí sua pregação algo utópica sobre a Mitezza.
A virtude das pessoas simples que não desejam o poder pelo poder. A virtude
horizontal, das pessoas que se miram na altura dos olhos, como iguais em
legitimidade e direitos. A virtude “fraca”, diz Bobbio, por definição
“impolítica”, novamente contrastando com Schmitt, nos lembrando que a
política não é tudo, que ela tem limites e que o poder não pertence aos homens,
mas ao direito. E, por fim, uma virtude estética: a suavidade ao invés da
arrogância.
O 7 de setembro se aproxima e ninguém sabe o que esperar. A
promessa bolsonarista era algo realmente perigoso, com muita gente armada,
incluindo policiais, ameaça escancarada de invasão do STF e golpe de
Estado. Mas o tom baixou, e o foco foi deslocado para uma defesa vaga da
“liberdade” — não no conceito moderno, em que a liberdade de um termina onde
começa a do outro, mas no da lei do mais forte: liberdade para desmatar,
recusar máscaras e vacinas, comprar fuzil, mentir, difamar, ameaçar.
É repugnante, mas não configura risco real. A mudança de
foco, entretanto, não tranquiliza. Ninguém controla uma turba depois de
insuflada, e ela vem sendo insuflada há muito tempo. O próprio presidente
voltou a subir o tom. “Nunca outra oportunidade para o povo brasileiro foi
ou será tão importante quanto esse nosso próximo 7 de setembro (...) chegou a
hora de nós, no dia 7, nos tornarmos independentes para valer (...) esse norte
será dado com muita força no próximo dia 7 (...) eu tenho três alternativas:
estar preso, estar morto ou a vitória (...) se você quer paz, prepare-se para a
guerra.”
Em que pese Bolsonaro ser bravateiro, o recado é claro. Além
disso, o presidente é naturalmente beligerante, deixa-se açular com facilidade
e age por impulso: uma vez no palanque, diz o que a multidão quer ouvir. Não é
impossível que uma frase sua leve à invasão do Supremo ou do Congresso.
(É bom lembrar que Trump jamais ordenou a seus fãs que invadissem o Capitólio;
ele disse apenas que protestassem, mas o “protesto” foi o que se viu.)
A situação no Brasil é crítica. Aproximamo-nos dos 600.000
mortos, e vão morrer muitos mais antes que a pandemia esteja sob controle. O
crescimento está comprometido, o desemprego está nas alturas, a inflação e os
juros sobem, o risco de apagão é real. E há a CPI. Ninguém no governo
tem competência ou credibilidade para reverter a situação. Não apenas a
esquerda reclama de Bolsonaro, mas também jornalistas, economistas,
empresários, industriais, banqueiros, o setor moderno do agronegócio, e até
militares.
Ninguém mais aguenta tanto desgoverno. A popularidade do
presidente cai, a rejeição sobe. A reeleição parece remota, e Bolsonaro
dá mostras de que teme ser preso quando deixar o poder (não sem motivo, pois se
multiplicam as acusações de que cometeu crimes).
As manifestações do 7 de setembro não têm o poder de
melhorar a situação do presidente. Se fracassarem, ele ficará ainda mais
fragilizado do que já está; se forem grandes e pacíficas, ele terá dado uma
demonstração de força, mas isso não tornará o cenário menos crítico nem
aumentará suas chances de ser reeleito. Já se houver arruaça à sua revelia, o
clamor pelo impeachment crescerá. E se, acuado, ele partir para o tudo ou nada
e tentar o golpe, os militares, como já deixaram claro, não o seguirão. O dano
será grande, mas Bolsonaro cairá. Em vez de ser preso no futuro, será
preso agora. (O que não deixará de ser, de certa maneira, uma proclamação de
independência — para ele e para todos nós.)
Com Fernando Schüller e Ricardo Rangel