terça-feira, 30 de novembro de 2021

BOLSONARO DESPRESIDE E O CENTRÃO DESGOVERNA


Guindado à Presidência com a promessa demagógica, autoritária e irrealizável de livrar o Brasil dos grilhões do presidencialismo de coalizão, o protagonista do maior estelionato eleitoral da história desta banânia (sorry, Dilma) e pior presidente desde a democratização (sorry again, Dilma) acabou entregando ao Centrão "a alma de seu governo", o que, de certa modo, foi uma volta às origens: desde que ingressou na vida pública, Bolsonaro foi filiado ao PDC, PDC, PP (duas vezes), PPR, PPB, PTB, PFL, PSC e PSL, todos do assim chamado "Centrão" (faltam PCC e o PQP, mas isso é outra conversa).

Em novembro de 2019, devido a desentendimentos com Luciano Bivar, o sultão do bananistão deixou o laranjal para plantar o Aliança pelo Brasil. Mas faltou estrume (a Justiça Eleitoral exige 492 mil assinaturas para a criação de um partido, e ele conseguiu somente 154 mil) e o projeto foi pra ponte que partiu. Desde então, sua alteza irreal flertou com uma dúzia de partidos (todas do Centrão), até se decidir finalmente a trocar alianças com o PL do mensaleiro e ex-presidiário — a quem ele chamava de “corrupto e condenado” e mandou pra puta que pariu no domingo 14, e de quem ouviu (leu, melhor dizendo) um retumbante "vá tomar no cu". Mas a DR acabou superada e o enlace, que havia sido suspenso, ficou para o final da tarde de hoje, com direito a juras de amor eterno e fidelidade imorredoura. Glória a Deus, como diria o folclórico Cabo Daciolo.  

Bolsonaro cresceu o olho para o Palácio do Planalto durante o desgoverno Dilma. Em 2014, o então deputado federal disse ao jornal O GLOBO que pretendia disputar a Presidência e que a página "Jair Bolsonaro Presidente 2014", criada no Facebook por "militantes da direita e apoiadores", já contava com mais de 12 mil seguidores (na época, o perfil oficial do então deputado tinha mais de 340 mil admiradores). Em 2015, ele já aparecia nas pesquisas com 4% das intenções de voto. Em 2016, subiu para 7% em 2016 e para 15% no ano seguinte.

Para minimizar os efeitos da pecha de sectário e da notória falta de conhecimento em relação a temas importantes para alguém que aspirava a comandar o país, o parlamentar passou a modular o discurso e terceirizar a elaboração de propostas em algumas áreas cruciais. Faltou combinar com Ciro Nogueira — presidente do PP —, que sempre fugia do assunto.

Após a reeleição de Dilma, o capitão trocou o PP pelo PSC, que também lhe negou legenda para disputar a Presidência. Em 2017, ele finalmente compreendeu que teria mais chances numa sigla menor, e, depois de flertar com o nanico PEN, acabou filiando-se ao PSL. O resto é história recente.

Para provar que era amigo do mercado e obter o apoio dos empresários, o estatista que acreditava em Estado grande e intervencionista, que sempre lutou por privilégios para corporações que se locupletavam do Estado havia décadas foi buscar Paulo Guedes, que embarcou em uma canoa que deveria saber furada. Para provar que era inimigo da corrupção e obter o apoio da classe média, o adepto das práticas da baixa política e amigo de milicianos foi buscar Sergio Moro, que embarcou em uma canoa que deveria saber furada. Para obter o apoio das Forças Armadas, o ex-militar agressivo e falastrão, que foi enxotado da corporação por indisciplina e subordinação, foi buscar legitimidade em uma fieira de generais, que embarcaram em uma canoa que deveriam saber furada.

Uma vez eleito e empossado, Bolsonaro obrigou Moro a reverter uma nomeação, tomou-lhe o Coaf, forçou-o a substituir um superintendente da PF, esnobou seu projeto contra a corrupção e, vendo que o ex-juiz não cumpriria a missão de blindar sua prole (*), obrigou-o a engolir dúzias de sapos e beber toda a água da lagoa. O auxiliar fingia não ver, tentava negociar, mas acabou abandonando a canoa para salvar o prestígio que ainda lhe restava.

(*) Em três casamentos, o presidente que acabou com a Lava-Jato porque “não tem mais corrupção no governo teve quatro filhos e uma filha. Desses, somente Laura, que tem 11 anos, não é alvo de investigações. Afora o célebre caso de Zero Um e as rachadinhas, a PF e o Ministério Público apuram suspeitas contra Eduardo Bolsonaro, Carlos Bolsonaro e Renan Bolsonaro, que incluem tráfico de influência, contratação de funcionários fantasmas e envolvimento na organização de manifestações que pediram o fechamento de instituições como o Congresso e o Supremo.

Bolsonaro desautorizou Guedes incontáveis vezes, sabotou seus projetos e, com o Centrão, enterrou de vez a agenda econômica. Em vez de aprender com MandettaMoro e Teich como sair da canoa antes de ela virar, o "superministro" espelhou-se em Pazuello e virou uma espécie de dublê de bonifrate e zero à esquerda.

Já as Forças Armadas, cujo comportamento irrepreensível ao longo das últimas três décadas desfez a imagem negativa associada aos 21 anos de ditadura, perdeu boa parte da admiração e do reconhecimento dos brasileiros. Alguns fardados de alta patente parecem ter desaprendido que, num governo civil, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica não devem obediência cega ao "comandante-em-chefe", e que tampouco é seu papel salvar o presidente de turno. Sua lealdade maior é com o país. Já passou da hora de os militares desembarcarem dessa canoa furada.

É inegável que a popularidade do mandatário e a aprovação de sua gestão venham afundando como martelo sem cabo. Mas seria leviano declará-lo carta fora do baralho. O sultão do bolsonaristão tem fichas próprias para jogar, com os instrumentos que lhe dão o cargo e a base de apoio que ainda o mantém com chances de passar ao segundo turno das eleições de 2022. Para além disso, é preciso ter clareza sobre a profundidade das mudanças sociais e políticas provocadas por sua gestão (calamitosa, mas enfim...) e pela emergência do bolsonarismo: o novo protagonismo das Forças Armadas, a politização de setores das polícias militares, a articulação de grupos e redes de extrema direita, tudo isso numa sociedade que se polariza e empobrece, com mais desigualdade.

Embora as características mais visíveis do presidencialismo multipartidário sejam aparentemente as mesmas, o terreno institucional e o ambiente sociopolítico nos quais o sistema opera sofreram alterações importantes nos últimos anos. Para pior. O Centrão e o bolsonarismo são formas distintas do proverbial atraso brasileiro. Não há dúvidas de que o bolsonarismo seja mais virulento e nocivo à democracia. É fato que a dominância do Centrão reduz os riscos no curto prazo, mas não se deve perder de vista a possibilidade de sua simbiose com o bolsonarismo — hipótese em que o Brasil estaria condenado a seguir, com maior velocidade, no plano inclinado de um gradual e inseguro declínio econômico e social, com muita instabilidade política. Presumir que a democracia poderá escapar sã e salva de um processo como esse é, no mínimo, imprudente.

Se vitoriosa, a fórmula "bolsonarismo atenuado + Centrão guloso" representaria o adeus — talvez definitivo — a qualquer aspiração maior de fazer do Brasil um país desenvolvido no sentido amplo do termo. Perderíamos o bonde da história, que se acelera puxado por uma nova onda de transformações tecnológicas, sob o acicate da mudança climática, que nos transformou em párias internacionais. Diante do que está em jogo, é hora de olhar de frente os enormes riscos que nos desafiam e evitar o autoengano com alívios de curto prazo.

O Brasil tem lideranças lúcidas e antenadas em diversos meios. O desafio é dar expressão política a essas forças. Primeiro, é preciso compor uma ampla frente política e social para evitar a reeleição de Bolsonaro e qualquer tentativa de desestabilização institucional. Depois, é preciso adotar uma prudente ousadia nas reformas do sistema político brasileiro. É sem dúvida relevante melhorar o seu funcionamento à luz da governabilidade. Nessa linha, importa reduzir a propensão à fragmentação partidária — no que vínhamos avançando com o fim das coligações proporcionais, agora ameaçado, e com a introdução da cláusula de desempenho —, bem como mitigar a tendência a crises institucionais de custosa resolução, para o que a eventual adoção do semipresidencialismo, em momento adequado, possa vir a ser um remédio.

Em vista do tamanho e da profundidade da crise da representação política, é preciso ir além. Trata-se de romper com os mecanismos que se autoalimentam e vêm fechando os partidos e a representação parlamentar para as "forças vivas" da sociedade. Por que um número cada vez maior de pessoas com vocação para a vida pública opta por ingressar em uma carreira da área jurídica ou econômica do Estado, ou se engajar em uma ONG, em lugar de se arriscar no ofício da política parlamentar? Não há resposta simples a essa pergunta, mas ela passa necessariamente pelo rompimento com o virtual monopólio das oligarquias partidárias sobre os polpudos recursos reservados ao financiamento eleitoral. Ou, quem sabe, quebrar o próprio monopólio dos partidos sobre a representação parlamentar, permitindo o lançamento de listas cívicas, mas desde que os eleitos tenham de seguir regras que os obriguem a funcionar como um grupo parlamentar no Congresso.

Essa ideia implica riscos para a "governabilidade", mas tem o mérito de deslocar a ênfase do debate para a dimensão da "representatividade" do sistema político e alargar o campo da discussão sobre as reformas políticas. Sem abrir mão da prudência, é preciso devolver algum encanto à política. Para isso não é preciso derrubar muros na nossa arquitetura institucional, mas é indispensável reformá-la para abrir mais o sistema político a novas formas de organização, expressão e participação da sociedade, seja pela desobstrução dos canais existentes, democratizando os partidos, seja pela criação de novos canais. Para fortalecer a democracia representativa, é preciso renová-la. E esse objetivo não será alcançado com a reeleição de Bolsonaro nem com a volta do lulopetismo corrupto ao poder.

Seria preferível ver Bolsonaro afastado da Presidência e julgado pelos crimes que cometeu durante seu mandato. Em outras palavras, a única saída realmente democrática para o Brasil seria o impeachment do sociopata. O problema é que ela é impedida pelos cleptocratas do Centrão. Se Bolsonaro realmente presidisse alguma coisa, poder-se-ia dizer que, nos moldes do acerto vigente, "o capetão preside e o Centrão governa e dita as regras da reeleição", como escreveu Jose Casado em sua coluna em Veja.

 Bolsonaro preside, o Centrão governa. É regra não escrita, mas confirmada por dois fatos relevantes nos últimos 80 dias. Em setembro, sob forte pressão do agrupamento que é seu esteio parlamentar, o mandatário recuou do confronto aberto com o Supremo e foi chorar as pitangas na barra da saia do ex-presidente Michel Temer, numa carta de rendição que, provavelmente, nem o próprio vampiro do Jaburu assinaria.

Na manhã da última sexta-feira, o capitão anunciou que não haveria restrições em aeroportos ao turismo antivacina. À tarde, ouviu líderes do Centrão. Ao anoitecer estava decidida a exigência do “passaporte vacinal”, como já recomendara a Avisa. Ciro Nogueira, chefe da Casa Civil e presidente licenciado do PP, foi quem fez o anúncio — via redes sociais. Ontem, a lista de restrições a viajantes foi ampliada.

Bolsonaro se esforça para desmentir os críticos que o acusam de agir como um demente. Ao ignorar recomendações da Anvisa para proteger o Brasil contra o Ômicron, o presidente comprovou que não sofre de insanidade, mas, sim, aproveita cada segundo dela. Há duas semanas, a Anvisa fez circular pela cúpula do governo um par de ofícios sobre a conveniência de reforçar o controle de fronteiras e aeroportos em reação ao aumento de casos de Covid no exterior. Aconselhou, entre outras medidas, a exigência de comprovante de vacinação. Bolsonaro deu de ombros.

Diante da confirmação de que uma nova cepa surgida na África do Sul circula pela atmosfera à procura de encrenca, a Anvisa recomendou, dessa vez em nota técnica trombeteada em público, o controle rigoroso do desembarque de passageiros procedentes de seis países africanos. E nada! Na véspera, por ordem do capetão, o ministro da Justiça afastou a hipótese de exigir prova de imunização dos estrangeiros. "Vacina não impede a transmissão da doença", declarou a sumidade. Dia seguinte, discursando para a récua de descerebrados que se apinha defronte ao Alvorada, o "mito" comentou o surgimento de "uma nova onda" de Covid. Chamou de "loucura" a ideia de restringir voos internacionais. "Tem que aprender a conviver com o vírus", disse.

Um detalhe encurta a distância que separa a teimosia de Bolsonaro da estupidez. As recomendações da Anvisa estão baseadas na Lei 13.979 — sancionada pelo próprio Bolsonaro em 6 de fevereiro de 2020 —, que prevê, no artigo 3º, que o governo pode adotar medidas excepcionais para o "enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus". Estão enumeradas nesse artigo oito providências. No item de número sete, lê-se o seguinte: "Restrição excepcional e temporária de entrada e saída do país, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos." Quer dizer: Bolsonaro ignora recomendações sanitárias inspiradas numa lei sancionada por ele.

Repetindo: em vez de cumprir a lei que surgiu para supostamente proteger os brasileiros durante a pandemia, o capitão prefere ignorar o que assinou para manter sua aliança preferencial com o vírus. O partido Rede Sustentabilidade pedirá ao STF que obrigue o mandatário a seguir as recomendações da Anvisa. A exemplo do que vem ocorrendo desde o início da pandemia, a corte o obrigará a fazer por imposição o que deixa de realizar por opção.

Israel, Bélgica e Hong Kong já detectaram a nova variante. Países da União Europeia, o Reino Unido e a Índia reforçaram o controle de fronteiras e de viagens. A OMS realizou reunião de emergência. As dúvidas quando à resistência da nova cepa às vacinas existentes derrubou os mercados ao redor do mundo. No Brasil, o Ibovespa chegou a cair 4%. E Bolsonaro, que costuma esgrimir uma hipotética preocupação com os efeitos da pandemia na atividade econômica, continua ruminando o seu negacionismo.

Aos poucos, o brasileiro vai descobrindo, afinal, a serventia da passagem de Bolsonaro pelo Planalto. Ele se consolida como um extraordinário protagonista de tríades: o nascer do Sol, a morte e a próxima estupidez do presidente. Descobre-se agora que há também no universo três coisas irrecuperáveis: a pedra atirada, a denúncia adiada pelo Augusto Aras e o prejuízo imposto ao Brasil por um presidente insano.

Como dito alhures, Bolsonaro marcou para esta terça, Dia do Evangélico, seu casamento com o partido de Valdemar Costa Neto. PL e PP são sócios no Centrão, que governa e, agora, também comanda a campanha de reeleição.

Triste Brasil.

Com Josias de Souza