NADA COMO UM DIA APÓS O OUTRO
Ainda que a notícia da prisão domiciliar decretada no final da tarde de ontem, por descumprimento reiterado das medidas cautelares impostas no âmbito do inquérito 4.995 e da PET 14.129, seja "matéria vencida", resolvi publicar este post em edição extraordinária para relembrar que Moraes já havia advertido que novo descumprimento resultaria em prisão preventiva.
"A Justiça é cega, mas não é tola, e não permitirá que um réu a faça de tola achando que ficará impune por ter poder político ou econômico", anotou o magistrado no despacho que impôs a Bolsonaro o uso da tornozeleira e outras medidas cautelares.
Moraes também mandou recolher o telefone celular usado pelo ex-presidente para participar remotamente dos atos bolsonaristas ocorridos no último domingo e proibiu visitas, a não ser de advogados e pessoas autorizadas dos autos, e de usar celulares, diretamente ou por meio de outras pessoas, advertiu que o descumprimento da domiciliar resultará na decretação da prisão preventiva.
Segundo Xandão, Bolsonaro usou redes sociais de aliados — incluindo seus três filhos parlamentares — para divulgar mensagens com "claro conteúdo de incentivo e instigação a ataques ao STF e apoio ostensivo à intervenção estrangeira no Poder Judiciário brasileiro", e que o desrespeito deliberado e continuado às decisões proferidas pela Corte demonstram a "necessidade de medidas mais gravosas para evitar a contínua reiteração delitiva do réu, mesmo com a imposição de medidas cautelares diversas da prisão".
Ainda não há registros de bolsonaristas cantando o hino nacional para pneu de trator nem enviando sinais de celular para ETs, mas sabe-se que apoiadores do coisa ruim saíram em carreata (e motociata) pelas ruas de Brasília para protestar contra a prisão domiciliar do "mito". Defronte ao condomínio Solar de Brasília, no Jardim Botânico, os manifestantes fizeram orações pelo ex-presidente e entoaram palavras de ordem, como "O Brasil vai parar" e "Supremo é o povo", "Fora, Xandão" e "Fora, Moraes". A PM reforçou a segurança e fechou o acesso à Esplanada dos Ministérios e à Praça dos Três Poderes, mas não houve confrontos ou incidentes.
Ao tomar conhecimento da decisão de Moraes, o deputado foragido Eduardo Bolsonaro — que se homiziou na cueca do Tio Sam para articular as sanções impostas pela Casa Branca ao Brasil e o cerco financeiro ao ministro — escarneceu: "Se não conseguem nem monitorar as tornozeleiras eletrônicas quem dirá cada preso em seu domicílio." Disse ainda o arremedo de lesa-pátria que se trata de "uma prisão sem crime, sem evidência, sem julgamento, mero abuso de poder para silenciar o maior líder da oposição brasileira", e que "o Brasil não vive mais uma democracia", além de chamar o magistrado de "psicopata descontrolado".
Como o mundo está de cabeça para baixo, não chega a causar espécie que o Brasil seja obrigado a acompanhar os humores da Casa Branca. O Departamento de Estado americano rosnou na noite passada para a prisão domiciliar do "mito" — Marco Rubio chamou Moraes de "abusador de direitos humanos sancionado pelos Estados Unidos" e ordenou em timbre categórico: "Deixem Bolsonaro falar!" —, sinalizando que Trump pode morder a qualquer momento.
Nos quatro anos da (indi)gestão Bolsonaro, o empreendimento que mais prosperou no Brasil foi a usina de crises instalada na portaria do Alvorada. Saudosista, Zero Três achou que seria uma boa ideia abrir uma filial do cercadinho na Casa Branca, mas acabou fornecendo matéria-prima para a construção da prisão domiciliar do pai, que está na bica de ser julgado por comandar a trama golpista. Em pouco menos de dois meses, Xandão abriu o inquérito que apura as ações antipatrióticas da "Famiglia Bolsonaro" com Trump, grudou a tornozeleira na perna do patriarca e o trancafiou o em casa.
Em maio de 2020, nos de seus mais célebres rompantes no cercadinho do Alvorada, o então presidente, incomodado pelo cerco de Moraes a empresários bolsonaristas, bradou: "Acabou, porra!". Cinco anos depois, imaginou que as sanções da Lei Magnitsky e as tarifas contra as exportações do Brasil soariam como um novo ultimato ao Supremo. Deu no que está dando.
Embates entre governo e oposição são da essência da democracia. Sem eles, o que se tem é a ausência do contraditório — fator imprescindível ao exercício do espírito crítico numa sociedade plural e vigilante na cobrança ao atendimento de suas demandas por parte das lideranças. Mas isso é uma coisa. Outra bem diferente é o aprisionamento a dicotomias orquestradas por dois polos divergentes que se retroalimentam. Tal processo mantém o eleitorado na condição de seguidor, quando deveria ser ele o condutor.
Não se trata de defender a ideia do atual governo de aproveitar o ensejo da ofensiva de Trump contra o Brasil para promover um ambiente de união nacional em torno de Lula sob a bandeira da soberania. A oportunidade que se apresenta — registrada na pesquisa do Datafolha — é de que pode haver vida inteligente fora das bolhas petista e bolsonarista.
A conferir.