De D. Pedro I ouvimos que “deixar filhos, pátria e amigos, não pode haver maior sacrifício; mas levar a honra ilibada, não pode haver maior glória". Forçado a abdicar em 1831, disse que “abria mão do cargo para "que o Brasil sossegasse".
Em 1961, sete meses depois de se instalar no recém-inaugurado Palácio da Alvorada, Jânio Quadros afirmou que "forças terríveis o levaram a renunciar”. Vargas tirou a própria vida (se é que não foi “suicidado”) alguns anos antes, e deixou uma carta melodramática em que escreveu: "à sanha dos meus inimigos deixo o legado da minha morte (...) nada mais vos posso dar a não ser meu próprio sangue (...) saio da vida para entrar na História”. Mas esqueceu de mencionar — ou lembrou de esquecer — o atentado contra seu maior adversário político, Carlos Lacerda, planejado dentro do palácio por seu núcleo duro.
Jango denunciou uma trama em que "não me deixam governar" e "contra mim se levantam interesses poderosos". Collor disse que caiu por conta de "um complô articulado por interesses contrariados"; Dilma, que foi vítima de uma "farsa"; Temer, que havia "uma conspiração contra seu governo". Lula, que ficou preso por 580 dias, pariu a seguinte pérola: "Eu sou uma jararaca; eles tentaram me matar e não conseguiram".
Em que pese esse passado de ressentimentos e lamúrias de imperadores e presidentes, ninguém foi tão constante na vitimização como Bolsonaro, seus familiares e seguidores. Além de requentar, amplificar e instrumentalizar ad nauseam a facada que levou em 2018, durante um ato de campanha em Juiz de Fora (MG), o aspirante a tiranete afirmou candidamente que "deu o sangue pelo país", numa tentativa de transformar um atentado num evento messiânico e idólatra.
No clássico "Purificar e Destruir", Jacques Sémelin anotou que muitos dos regimes mais autoritários e sanguinários da história foram justificados por uma violência redentora e restauradora contra inimigos da pátria que impedia o povo de atingir seu potencial.
No populismo, o povo é sempre trabalhador, moral, altivo, o verdadeiro representante da alma mais pura da nação, herdeiro legítimo dos bons tempos que construíram o país, e “eles”, os conspiradores que minavam os fundamentos da pátria como cupins.
A única saída para curar essa doença social era identificar os inimigos do povo e depois prender, exilar e matar. Não que os ditadores gostassem de violência. Eles a evocavam como um mal necessário para a restauração da ordem e passava a ser aceita como parte de uma guerra justa, legítima defesa, motivada por uma ira santa, patriotismo e sacrifício dos verdadeiros patriotas que sonham restaurar o passado glorioso que foi roubado por "eles".
Quanto mais crimes demandados pelos líderes do movimento, mais o vitimismo servia como justificativa moral e espiritual para os carrascos convocados naquela missão cívica. Mas a democracia pressupõe alternância de poder e é do jogo que grupos políticos distintos tenham vitórias e derrotas, entrem e saiam do poder.
Como ensinou Roger Scruton, a democracia é o regime em que os derrotados na eleição aceitam ser governados pelo grupo adversário e vão para a oposição em paz, desejando boa sorte a quem venceu e mostrando que o país está acima daquela disputa que se encerra.
A lógica autoritária e tribal não reconhece adversários legítimos, apenas inimigos a serem destruídos. Toda disputa é existencial, e o destino da nação está sempre naquela disputa pelo poder que não admite derrota. Se o fim é a salvação do povo, todo meio é legítimo na luta, mesmo os mais violentos e arbitrários. E a maneira mais eficiente de convencer um cidadão comum a cometer atos criminosos, como invadir e vandalizar prédios públicos, é fazer com que ele acredite que ele é vítima, e que, naquela disputa, é matar ou morrer.
Foi essa lógica que alimentou o núcleo de desinformação da trama golpista bolsonarista — e funcionou por anos como central de produção de fantasias persecutórias, instigando e radicalizando parte da população contra as instituições, as urnas, as pesquisas e "eles".
Nenhum movimento político no país levou o vitimismo e o conspiracionismo tão longe quanto o bolsonarismo. Em 2018, ainda no hospital, Bolsonaro afirmou em rede nacional: "Eu, pelo que eu vejo nas ruas, não aceito resultado das eleições diferente da minha eleição". Três anos depois, diante de pastores, completou: "Só saio [da presidência] preso, morto ou com a vitória". "Não tenho ambição pelo poder, tenho obsessão pelo Brasil", repetia. "Deus me colocou aqui, e somente Deus me tira daqui". Depois da prisão, mais vitimismo: "Estou sendo humilhado. Não tem nada de concreto. Isso é perseguição".
Quando foi derrubado por um golpe militar, D. Pedro II tinha à mão todo o prestígio necessário para incendiar o país e provocar o caos. Muitos correligionários se ofereceram para pegar em armas e defender seu reinado, mas ele partiu sem vitimismo, sem bravata, sem transformar sua dor em chantagem. Aceitou o exílio com serenidade. Saiu como estadista, não como coitado — e nunca foi superado. Jamais teremos mais um brasileiro como D. Pedro II, mas poderíamos ter ao menos um mínimo de compostura.
Bolsonaro precisa de remédio que ofereça democracia, não de psiquiatra. Não existe droga química contra o fascismo. O remédio é a política, o exercício da democracia até onde ela deve e pode alcançar, que é fazer a defesa de si mesma. E para isso é preciso às vezes prender pessoas que cometem crimes.
Os advogados do ex-presidente insistem que seu cliente precisa ficar em casa para ter uma assistência permanente, eventualmente com aparelhos, etc., que na cadeia ele não teria. Mas a pergunta é: cadê o imbrochável, incomível e imorrível, para quem a Covid não passava de uma gripezinha mixuruca? Que estaria saudável para enfrentar uma campanha eleitoral, mas que vai morrer se ficar numa cela da Papuda?
Bolsonaro sempre foi contra punir fake news, porque mentir não é crime. Na esteira desse raciocínio, fingir demência também não é.