QUEM COM FERRO FERE COM FERRO SERÁ FERIDO.
A despeito do voto quilométrico do ministro Luiz Fux — que soou mais como sustentação oral da defesa do que como decisão técnica de um juiz — Bolsonaro restou condenado a 27 anos e 3 meses de cana e os demais réus receberam penas variadas, conforme a participação de cada um na trama golpista. Além disso, o grupo deverá pagar solidariamente uma multa de R$ 30 milhões, a título de indenização por danos morais coletivos.
Segundo a jurisprudência do STF, o voto divergente de Fux não enseja a interposição de embargos infringentes. Se os advogados dos réus insistirem, Moraes certamente (e acertadamente, a meu ver) negará seguimento ao recurso. Ainda caberia agravo regimental, mas a decisão monocrática do relator dificilmente seria modificada pela Turma. Já os embargos declaratórios não têm o condão de modificar a decisão de mérito, pois se destinam somente a esclarecer pontos obscuros ou conflitantes da sentença ou acórdão embargado, mas são utilizados pelos advogados para retardar o trânsito em julgado e, consequentemente, a prisão de seus clientes.
Esgotados os recursos, as penas de até quatro anos poderão ser cumpridas em regime aberto, e as de quatro a oito anos, em regime semiaberto. No caso de Bolsonaro, o regime inicial é fechado. Como ex-capitão, ele teria direito a uma cela num estabelecimento do Exército, mas é provável que perca a patente por decisão do Superior Tribunal Militar. Assim, ser hospedado no complexo penitenciário da Papuda, em Brasília, ou numa cela especial da Polícia Federal, são as possibilidades mais prováveis — lembrando que sua defesa já se equipa para pedir a prisão domiciliar por “razões humanitárias”. Vamos acompanhar e ver que bicho dá.
Nunca antes na história deste país — como diria Lula — golpistas tiveram de pagar por suas escolhas. Infelizmente, atendendo sabe-se lá a quais desígnios Fux fez a vexaminosa apologia da impunidade. Mas essa inédita condenação não deve ser tratada como ponto final. Trama-se a anistia no Congresso antes mesmo que as togas esbocem as ordens de prisão. Trump ameaça colocar navios no Lago Paranoá. Tarcísio de Freitas, o anti-Lula, soa como neo-Bolsonaro. De resto, a punição do golpismo fardado não será completa antes que as FFAA providenciem o rito da desonra, que passa pela inédita perda de patentes.
Nosso passado como nação está envenenado por 14 tentativas de golpe, sete das quais bem-sucedidas. O presente é marcado pelo esforço institucional para proporcionar ao país uma vacina democrática que iniba o atalho de mais uma anistia. Faltava uma condenação que descesse ao verbete da enciclopédia como ensinamento para evitar no futuro a repetição de atentados contra o regime democrático.
Na sua passagem pela Presidência, Bolsonaro especializou-se em puxar o rabo da democracia, mas levou uma mordida da maioria do eleitorado, que lhe sonegou a reeleição em 2022. Ao tentar o golpe, mostrou que não aprendera a lição. Em apartes concedidos por Cármen e Zanin, Moraes e Dino estilhaçaram o voto proferido por Fux, que tratara Bolsonaro como uma espécie de sub-Cid, condenando o ajudante de ordens e o candidato a vice por abolição do Estado Democrático de Direito e isentando o ex-presidente de todas as culpas.
Fux fatiou a denúncia da PGR para inocentar Bolsonaro, como se o complô do golpe — comprovado por fartas evidências — fosse uma organização criminosa sem chefe. Moraes exibiu vídeos que colocaram o "mito" na cena do crime. Dino trocou em miúdos a metáfora bovina que ouvira na véspera de Zanin: "É aquela espécie de falácia segundo a qual você divide o boi em bifes e pergunta a cada pedaço: ‘Você é um boi?' É claro que o pedaço nada diz. Você pede para o pedaço do boi mugir, e o pedaço não muge. Daí a conclusão falseada é de que nunca existiu o boi."
Observação: Antes mesmo que o STF definisse o tamanho das penas, o Flávio Bolsonaro reiterou a ficção da perseguição e Valdemar Costa Neto veio à boca do palco para declarar: "Vamos ter que partir para a anistia; não há opção que não englobe colocar o Bolsonaro nesse projeto."
Em 2022, o deslocamento na autoestima de uma minoria foi suficiente para mandar o arcaísmo golpista mais cedo para casa. A cicatrização da chaga depende da adesão de quem ainda não se indignou o bastante. Não deveria ser preciso esfolar a democracia com uma nova anistia para se revoltar, mas o cotidiano de anormalidades anestesia o país. Prestar atenção pode ser melhor que virar o rosto, pois quem encara a realidade tem mais chance de atingir o estágio da autoconsciência — e daí para a consciência coletiva é um pulo.
O bolsonarismo tem cores locais, mas a extrema direita está presente em todas as democracias mundo afora. E o discurso é sempre o mesmo: o establishment progressista ou esquerdista dominaria as instituições e não respeitaria a verdadeira vontade do povo, da qual a extrema-direita se julga intérprete eficaz. Assim, desrespeitar as regras do jogo e as instituições não constituiria atos criminosos, mas apenas uma resposta política a esse progressismo supostamente autoritário que, sob o pretexto de garantir direitos, pluralidade e diversidade, esmagaria a vontade de verdadeiros patriotas e de cidadãos de bem.
Resta agora saber se o Congresso aprendeu a lição ou se vai virar a página da história para trás. Dependendo do que fizeram, os parlamentares podem elevar a estatura de suas biografias ou rebaixar o pé-direito da democracia.