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sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

AINDA SOBRE JOÃO DE DEUS E LULA



Acusado de assediar e abusar sexualmente de mulheres que buscavam seus tratamentos esotéricos, o curandeiro mais famoso do Brasil parece ser mais um caso lamentável de denúncia de abuso de poder espiritual. O número elevado (e crescente) de denúncias indicam que ele tirou proveito da vulnerabilidade emocional dessas mulheres, seguro de que sua eminência religiosa o protegeria das investigações. Já comentei esse assunto dias atrás, mas volto a ele porque um artigo publicado por Rafael Valladão no site do Instituto Liberal reforça minha tese ao traçar um paralelo entre a personalidade de João de Deus e o apelo messiânico em torno de Lula, o chefe da quadrilha petista.

Separados pelas proporções de suas respectivas funções, diz o articulista, João de DeusLula têm em comum a aura de semideuses louvados por seguidores alienados. O curandeiro utilizava seu centro espiritualista como uma fortaleza narcísica, onde todas as práticas remetiam à sua figura e o ambiente misterioso contribuía para seduzir homens e mulheres desacreditados da medicina. Diferentemente de lideranças religiosas normais, como padres ou babalaôs, o médium molestador criou um cenário místico em que era protagonista isolado, e seu patrimônio pessoal foi crescendo, de modo suspeito, à medida que a Casa Dom Inácio de Loyola ganhava fama.

Para criar seu pequeno império místico, João de Deus se valeu do poder espiritual, do qual uma das características é a sedução afetiva com que a liderança religiosa domina seus subordinados. Para tornar possível essa relação de poder, o líder sectário necessita apresentar-se ao público como um homem iluminado pelos céus e movido por sentimentos nobres, como a compaixão e a caridade. A obediência ao chefe espiritual é uma inclinação antropológica do indivíduo, uma tendência gravada em nossa genética ao longo da evolução humana. Não por acaso, a política moderna, baseada no exercício impessoal e racional do poder, é uma invenção que contraria as nossas tendências naturais de coletivismo e misticismo. É claro que a religiosidade e o senso de comunidade são traços da natureza humana, e não surpreende que tantos políticos tenham se aproveitado desses traços para aprofundar e consolidar seu poder. Mas a pergunta é: O que João de Deus e Lula podem ter em comum?

A resposta é simples: ambos se valem de elementos religiosos para ampliar seus poderes mundanos. Se, como tudo indica, João de Deus abusou sexualmente das mulheres e extorquiu dinheiro dos demais, é porque não tinha nenhuma preocupação propriamente religiosa com seus fiéis. Seu interesse talvez fosse apenas criar um círculo idólatra em seu louvor. Já o ex-presidente Lula, um profissional da política, realizou o percurso inverso: foi colher na religião os ingredientes espirituais de que necessitava para temperar seu poder político. O lulopetismo se transfigurou em seita mais precisamente no momento em que o PT entrou em crise, com o impedimento de Dilma e as denúncias de corrupção contra a cúpula do partido, incluindo seu sumo sacerdote. Enquanto esteve no comando da presidência da República, Lula tentou se fazer de bom republicano e não estimulou tanto o culto à sua personalidade, mas quando se viu no caminho da prisão acionou a máquina ideológica do PT e se afirmou como o profeta carismático da inclusão social.

Se é verdade que um dos efeitos da crença cega é a negação da realidade, então alguns exemplos podem ser úteis. Quando o escândalo estourou em Abadiânia, os sectários de João de Deus se sentiram perplexos. Parecia-lhes absurdo que o mesmo homem caridoso das curas espirituais fosse capaz de descer à baixeza moral do abuso sexual. Em entrevista concedida ao Fantástico, algumas visitantes alemãs da Casa Dom Inácio de Loyola disseram não acreditar nas denúncias contra o médium. Como essas turistas, outras pessoas provavelmente se sentiram desconfiadas — afinal João de Deus era incorruptível.

O mesmo poderia ser dito de líderes evangélicos como Silas Malafaia, que, investigados por crimes de lavagem de dinheiro, ainda se apresentam ao público como homens limpos e moralmente inquestionáveis. Todo esse culto à personalidade é incomum nas religiões em geral, mas é frequente nas seitas, que geralmente se compõem de fanáticos vinculados espiritualmente pela prática de rituais e pela observância estrita de códigos de conduta. 

Não raro encontramos seitas em que o líder espiritual é o chefe pessoal de seus membros. Nelas é frequente a confusão entre o material e o imaterial. Lula também arrebanhou fiéis devotados. Quando foi preso, recebeu o apoio sectário de seus seguidores na forma da greve de fome por justiça no STF, em que alguns militantes fizeram um pacto de não-alimentação até que seu amado líder fosse absolvido. A greve foi acompanhada pelo jornal Brasil de Fato, linha-auxiliar do PT, que produziu reportagens sobre o estado de saúde dos militantes, como se ameaçar o próprio organismo em favor de um criminoso contumaz como Lula fosse algo legítimo e banal.

Lula foi o político profissional que ascendeu ao poder com base na militância sindical, corrompeu-se e arrastou o Brasil à crise econômica que explodiu em 2015. Para seus sectários, no entanto, ele se transformou em mártir dos pobres. Sua santidade não poderia jamais ser questionada por tribunais mundanos ou homens de pouca fé. Deificado pela grande mídia, admirado por artistas e cultuado por movimentos sociais, sentiu-se encorajado a se manter acima do bem e do mal, intocável pelas leis e imune a críticas. Seu senso de impunidade se parece com o verificado no caso de João de Deus, pois o médium teria dominado seus seguidores como Lula hipnotizou seus fiéis. Resta saber se ele também terá à disposição uma horda alucinada de militantes dispostos a dar a própria vida em favor do líder.