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sexta-feira, 4 de outubro de 2019

AINDA SOBRE A SUPREMA VERGONHA




Como eu adiantei no post anterior, o STF tornou-se uma usina de decisões monocráticas cuja essência varia ao sabor das convicções político-partidárias de cada ministro. Quando estender os limites da hermenêutica não lhes parece suficiente, os togados supremos travestem-se de legisladores para parir jabuticabas que amoldem os fatos a suas versões.

Membros do poder legislativo são eleitos pelo povo e pelo menos em tese podem ser punidos nas urnas por mijar fora do penico, mas ministros de cortes superiores são indicados pelo presidente da República e chancelados pelo Senado, de modo que têm emprego garantido até a aposentadoria compulsória (a menos que se desliguem espontaneamente ou que batam as botas antes de completar 75 anos). Claro que sempre existe a possibilidade de impichá-los, mas isso depende de combinar com o presidente do Senado da vez. Nas gavetas de Davi Alcolumbre — que vem se revelando um clone perfeito de Renan Calheiros, só que algumas arrobas a mais  dormitam nada menos que 34 pedidos de impeachment contra ministros do STF. Gilmar Mendes é alvo mais recorrente, com 10, sendo seguido de perto por Dias Toffoli, com 9 (entre os demais, a única que escapa até agora é Cármen Lúcia).

Na última quarta-feira, após anular a condenação de Márcio de Almeida Ferreira por corrupção passiva e lavagem de dinheiro (a segunda no âmbito da Lava-Jato), a pretexto de o réu ter sido prejudicado pelo fato de o juiz não permitir que sua defesa apresentasse as razões finais depois da defesa do réu delator, os ministros decidiram sumular esse entendimento capenga para homenagear os criminosos e escarnecer dos cidadãos de bem. No finalzinho da tarde, o plenário alcançou os 8 votos necessários para o desenvolvimento de uma tese que norteie as instâncias inferiores sobre a ordem de apresentação dos memoriais em processos que envolvem réus delatores e delatados (votam contra os ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello, mas cada qual com um entendimento diferente).

Apesar de ter ressalvas em relação a Marco Aurélio Mello, destaco (e aplaudo) o lampejo de sensatez desse ministro que tantas barbaridades já cometeu — quem não se lembra da estapafúrdia liminar que ele assinou no dia 19 de dezembro do ano passado, minutos depois do início do recesso do Judiciário, que só não libertou Lula e outros 170 mil condenados em segunda instância que aguardam presos o julgamento de seus recursos às instâncias superiores porque foi prontamente cassada por Toffoli? Voltando ao voto do ministro na última quarta-feira, confira esse trecho:

"O Supremo não legisla, pronuncia-se a partir da ordem jurídica em vigor; entender que o delatado deve falar após o delator é esquecer que ambos têm condição única no processo, qual seja de réus, estabelecendo-se ordem discrepante da versada na legislação de regência (...) a delação sempre existiu e não é mais que depoimento revelador de materialidade criminosa e indícios de autoria (...) e por si só não serve à condenação de quem quer que seja." 

Enfim, Toffoli suspendeu a sessão até a tarde de quinta-feira, mas pensou melhor e resolveu tirar o tema da pauta e adiar o julgamento sine die. Oficialmente, porque diversos ministros tinham outros compromissos e não poderiam participar da sessão de quinta-feira. Na verdade, porque não houve consenso em torno de sua proposta; alguns de seus pares são contrários à fixação da tese e outros rejeitam o modelo que o presidente da corte sugeriu — segundo o qual só teriam a sentença anulada e voltariam à fase de alegações finais os processos de réus que efetivamente reclamaram da ordem de apresentação de memoriais na origem e que comprovassem o dano causado por sua inobservância.  

Lembro que o réu não se defende da delação, mas da acusação feita pelo Ministério Público. Assim, salvo melhor juízo, não faz diferença nenhuma apresentar as razões finais ao mesmo tempo ou depois dos corréus, delatores ou não. Reza o melhor entendimento que: 1) réus colaboradores não estão no polo da acusação — ou seja, também são processados pelo Estado; 2) a lei processual não dispõe sobre prazo diverso para corréus em nenhuma hipótese, sejam eles delatores ou delatados.

Em outras palavras, essa conversa de que não conceder prazo diferenciado para as razões finais de réus delatores e delatados fere o direito de defesa destes últimos é mera cantilena para dormitar bovinos. Isso não está na lei, e só faz sentido na imaginação prodigiosa dos eminentes ministros que ora se valem de criatividade para retaliar a Lava-Jato. Ao parir mais essa jabuticaba, o Supremo se apequenou ainda mais, não só por abrir os portões do inferno, mas por relutar em decidir quais capetas poderão passar ele. 

Se o Brasil já era uma aberração em vários sentidos, agora tornou-se também a única democracia do planeta com 13 poderes: o Executivo, o Legislativo e os 11 ministros do Supremo, cada qual agindo como se fosse dono de seu próprio tribunal e de seus próprios fatos. A propósito, semanas atrás o brilhante comentarista político Caio Coppolla tuitou mais ou menos o seguinte: "Era uma vez um supremo tribunal federal que se tornou um pequeno parlamento autoritário com um enorme balcão de atendimento reservado aos poderosos e aos opressores".

O Supremo sempre foi um tribunal político, mas esse aspecto só ficou visível com a Lava-Jato. Até então, mal se ouvia o nome de um ou outro ministro, e, mesmo assim, só na indigesta Voz do Brasil. Hoje, as chances de você encontrar quem saiba de cor os nomes do 11 togados são bem maiores que de encontrar quem se lembre da escalação da seleção canarinho que foi goleada pela Alemanha na copa de 2010. 

Ministros que se autodeclaram "garantistas" são na verdade coniventes com a corrupção. E já não têm o menor constrangimento em confabular diante das câmeras da TV JUSTIÇA. Alguns têm se encontrado sub-repticiamente com o presidente Bolsonaro, cujo projeto de governo ora se resume a blindar seu primogênito contra as investigações do MP-RJ e emplacar o caçula na embaixada do Brasil nos EUA. Toffoli já havia se encarregado de aliviar a barra do primeiro rebento, mas agora a blindagem ganhou o reforço de Gilmar Mendes (veremos isso melhor numa próxima postagem), que não esconde seu ódio pela Lava-Jato.

Haveria muito mais a dizer, mas por hoje é só.