terça-feira, 3 de março de 2020

O AI-5, O GUARDA DA ESQUINA E O MOTIM DA PM NO CEARÁ



Na postagem da último sábado, faltou falar do AI-5 e do guarda da esquina. Começando pelo começo, em 13 de dezembro de 1968 o general-presidente de plantão, Arthur da Costa e Silva, baixou o Ato Institucional nº 5 e, ato contínuo (sem trocadilho), fechou o Congresso, a pretexto de “combater a subversão e as ideologias contrárias às tradições de nosso povo”. Por ter dado início aos assim chamados “anos de chumbo“ (1968-1974), durante os quais os poderes da alta cúpula militar eram quase absolutos, o AI-5 foi considerado o mais duro dos dezessete golpes desfechados contra a democracia ao longo de duas décadas de ditadura.

Observação: Essa não foi a primeira vez (e nem a última) que o parlamento brasileiro foi fechado ou dissolvido desde que D. Pedro I proclamou a Independência (não às margens do riacho do Ipiranga e tampouco com a pompa e circunstância retratada no famoso quadro de Pedro Américo, como veremos numa próxima oportunidade).

Sobre o “guarda da esquina”, reza a história que, durante a reunião em que se decidiu baixar o AI-5, o então vice-presidente Pedro Aleixo teria dito ao general Costa e Silva o seguinte: “O problema deste ato não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país, mas o guarda da esquina.”

Embora a declaração seja citada em diversas matérias (sobretudo em blogs de esquerda), sua origem é duvidosa. Na gravação em áudio da reunião do AI-5, na qual Aleixo se coloca contra a adoção da medida, não há registro da frase. É possível que ele a tenha pronunciado a frase em outro contexto, ou mesmo que ela seja uma fake news pré-histórica. De qualquer forma, fictício ou verdadeiro, o temor de Pedro Aleixo voltou sinistramente à ordem do dia quando, para evitar a volta do criminoso Lula e seus cúmplices do PT ao poder, elegemos presidente da República alguém propenso a desempenhar o papel do guarda da esquina do AI-5.

Mudando de pato para ganso, mas ainda no âmbito do guarda (ou da polícia, melhor dizendo), terminou o motim de policiais militares no Ceará. Nas palavras de um governador, "foi desarmada uma espécie de bomba relógio" que poderia explodir em outras unidades da federação, já que a anistia pretendida pelos amotinados não foi concedida. Faz sentido. Basta fazer uma pesquisa no Google para constatar que anistias concedidas no passado, se não causaram, no mínimo contribuíram para movimentos similares eclodirem em outros estados.

O fim da greve também foi bem recebido no Palácio do Planalto. O temor era o mesmo: que o motim no Ceará se espalhasse e perdesse o controle. Resta avaliar a repercussão política. Lideranças ligadas às polícias entraram na política e passaram a ocupar cargos de destaque no Executivo e no Legislativo nas três esferas: União, estados e municípios. Parlamentares da bancada de policiais demonstram preocupação com o episódio, sobretudo porque a população ficou refém do movimento, com um número trágico de assassinatos (o que pode se voltar contra a atuação política de policiais).

De acordo com Josias de Souza, mesmo quem não entende nada de política é capaz de enxergar a politicagem na crise policial do Ceará. A boa notícia é que o motim terminou sem que a exigência de anistia de amotinados fosse atendida pelo governador. Negociar com tropa rebelada é ofensa à ordem democrática. Se anistiasse policiais que se fecharam nos quartéis de armas na mão e capuz na cabeça, o governador assinaria sua capitulação e transformaria em sócio de uma palhaçada o governo federal, que enviou a cavalaria da Força Nacional e do Exército. A má notícia é que autoridades e políticos decidiram sapatear ao redor da memória dos 241 cadáveres que desceram à cova vítimas de homicídios durante o motim.

Num cenário ideal, os amotinados teriam sido retirados dos quartéis sem negociação. Entretanto, o que resultou do entendimento, segundo se anuncia, foi a garantia dada aos amotinados de que seus processos serão justos, acompanhados por comissão externa com gente da OAB e da Defensoria Pública. Ou seja: didaticamente, assegurou-se garantia legal a quem violou a lei.

O desfecho teria sido ainda melhor se agentes públicos e políticos tivessem feito uma greve verbal antes e depois do motim. No sábado, Sergio Moro disse que o motim era ilegal. Mas ponderou que os policiais, por dedicados, tinham de ser valorizados. Ora, como valorizar policial fora da lei? No domingo, falando aos amotinados, o diretor da Força Nacional de Segurança, foi ainda mais generoso, chamando os policiais sublevados do Ceará de "gigantes" e "corajosos". Ao agigantar os amotinados, reduziu o pé-direito da pasta da Justiça.

Depois, no Twitter, Moro festejou o fim do motim realçando o papel do governo federal. "Prevaleceu o bom senso, sem radicalismos", ele escreveu. Vestindo a carapuça, Ciro Gomes soou como Ciro Gomes. Referindo-se a Bolsonaro, seu "capanga Moro" e os generais, disse que no Ceará "manda a Lei!". Será? Se a Lei prevalecesse no Ceará, Cid Gomes, o irmão de Ciro, estaria respondendo a algum processo criminal. Não há lei que autorize senador a tratorar pessoas.

Suave com os amotinados, Moro foi mordaz com Ciro. A crise foi solucionada "apesar dos Gomes", ele escreveu nas redes sociais. Bolsonaro ironizou Ciro: "Não somos psiquiatras". Quando se está lidando com um insano, o melhor é se fingir de são, mesmo que você também seja meio tantã. É uma pena que, depois de assistir à desordem, o país não possa celebrar em paz o que houve de melhor no motim do Ceará: a ausência de anistia. De resto, é lamentável que, além de suportar os efeitos da fuzarca, as vítimas dos amotinados tenham de suportar a exploração politiqueira do seu drama.