Ainda sobre Caos, políticos, eleições e a tragédia anunciada
(leia-se este governo), começo com uma velha anedota que tem tudo a ver:
Deus estava criando o mundo, quando um anjo se aproximou e
disse:
— Senhor, a Terra é tão perfeita, um verdadeiro paraíso
para a humanidade.
E o Criador respondeu:
— Não, anjo, a Terra não é um paraíso, veja só.
Então o anjo viu que para cada continente Deus reservava
grandes catástrofes naturais, como desertos, geleiras, terremotos, vulcões e
furacões. Mas chamou-lhe a atenção uma grande porção de terra no hemisfério
sul.
— Mas Senhor, se estás semeando catástrofes por todo o
mundo porque é que aquele grande pedaço de terra ali ao sul é tão perfeito?
Veja, lá o clima é tão agradável, há lindas florestas e praias, grandes e belos
rios e não desertos, geleiras, terremotos, vulcões ou furacões. Por quê,
Senhor?
Deus respondeu:
— Ah, meu caro anjo, espera só pra ver o povinho de merda
que eu vou colocar ali.
Há quem diga que o Brasil não tem jeito. Ou que o jeito é
devolvê-lo aos portugueses e recomeçar do zero. Ou reverter o tempo até aquele
fatídico 22 de abril e torcer para que dessa vez os nativos devorem os
lusitanos.
Gozações à parte, vivemos num país que Charles De Gaulle
disse não ser sério, onde o futuro é duvidoso e o passado, incerto. "Le
Brésil n’est pas un pays serieux", teria dito o general francês, em
1964. Só que a frase é do diplomata brasileiro Carlos Alves de Souza Filho,
genro do presidente Artur Bernardes e embaixador do Brasil na França
entre 1956 e 1964. Quanto ao "passado incerto e futuro duvidoso", a autoria é tão incerta quanto o passado brasileiro: há quem a
atribua ao ex-ministro Pedro Malan, há quem a credite ao ex-presidente
do BC Gustavo Loyola.
A "farsa nacional" começou com o descobrimento. De acordo com os livros de história (pelo menos os da minha época de estudante), Cabral zarpou de Lisboa em 9 de março de 1.500 com destino à Kozhikkode (então chamada de Calicut), na costa ocidental da Índia. Em meio ao Mar Tenebroso — como era conhecido o Oceano Atlântico naqueles tempos —, sua frota foi tirada da rota original por uma tormenta e... voilà: em 22 de abril os lusitanos aportaram num ponto do (atual) litoral sul da Bahia a que chamaram Porto Seguro. Mas, como diria o contestador Pedro Pedreira (personagem de Francisco Milani na Escolinha do Professor Raimundo), há controvérsias.
Comecemos pelo fenômeno climático, que, para alguns, foi uma
tempestade e, para outros, uma calmaria — ainda que isso não mude o fato de Cabral ter zarpado de Portugal com a intenção de fazer uma escala no Brasil antes de seguir para as Índias.
Segundo a "Relação do Piloto
Anônimo” publicada originalmente em 1507 — que, ao lado das cartas de Pedro
Vaz de Caminha e de Mestre João, é um dos três testemunhos diretos
do descobrimento do Brasil que sobreviveram ao tempo —, uma tormenta teria causado
o naufrágio da nau comandada por Vasco de Ataíde, em 23 de março, nas
imediações do arquipélago de Cabo Verde. Mas a carta de Caminha relata
que a viagem de Lisboa até Porto Seguro decorreu na mais completa normalidade, "sem
haver tempo forte ou contrário para que assim pudesse ser".
A região do suposto naufrágio era conhecida como
"calmas equatoriais", porque os ventos alísios (assim chamados porque
"alisam" o mar) deixam de soprar por dias ou semanas a fio, e as
embarcações a vela de então ficavam ao sabor das correntes marinhas. Em seu
admirável estudo sobre a viagem de Cabral, o comandante Max Justo
Guedes calculou que, durante aqueles dias de calmaria, a frota cabralina
foi empurrada cerca de 90 milhas para oeste pela Corrente Equatorial Sul.
Mas, também
de acordo com Guedes, tal deslocamento — equivalente a uns 170
quilômetros — seria insignificante e não poderia levar ao “descobrimento casual”
do Brasil. Donde a chegada da expedição portuguesa ao litoral da
Bahia não se deveu nem a tormentas, nem a calmarias, mas aos fatos relatados a
seguir. Acompanhe.
Cristóvão
Colombo propôs ao então rei de Portugal que financiasse uma expedição
às Índias, mas que o levaria ao continente americano. Diante da recusa de D.
João II, o genovês procurou os Reis
Católicos de Espanha, que concordaram em financiá-lo. Colombo zarpou
do porto de Palos no dia 3 de agosto de 1492, no comando da nau Santa Maria,
acompanhado das caravelas Pinta e Nina, e ao retornar à Europa, em
março do ano seguinte, fez uma rápida escala em Lisboa e relatou a D. João
II a existência de terras ao sul do que hoje é a República Dominicana.
Observação: No Brasil de hoje, o termo "caravela"
designa
qualquer embarcação a vela, mas só 3 dos navios da frota de Cabral
mereciam ser assim chamados. Os outros dez eram naus (incluindo uma
"naveta", ou pequena nau, para transportar mantimentos extras). A
rigor, as caravelas eram embarcações menores, com apenas dois mastros, apenas
um pequeno castelo à popa e velas triangulares ou quadradas. Já as naus eram
maiores, tinham várias cobertas (conveses abaixo do convés principal), três
mastros e dois castelos, além de capacidade para transportar mais tripulantes —
enquanto as caravelas mediam 22 metros de comprimento e transportavam até 80
homens, as naus podiam chegar a 35 metros e tinham capacidade para 150
tripulantes.
Ao serem informados por Colombo do resultado da missão, Fernando de Aragão e Izabel de Castela se comprometeram com o papa Alexandre VI (que era espanhol) a difundir o cristianismo no “Novo Mundo” em troca da posse das novas terras. Assim, o pontífice editou a famosa Bula Inter Coetera, que estabeleceu uma linha imaginária 100 léguas a oeste de Cabo Verde e garantiu aos castelhanos a posse das terras que ficassem na porção oriental desse marco.
Ao serem informados por Colombo do resultado da missão, Fernando de Aragão e Izabel de Castela se comprometeram com o papa Alexandre VI (que era espanhol) a difundir o cristianismo no “Novo Mundo” em troca da posse das novas terras. Assim, o pontífice editou a famosa Bula Inter Coetera, que estabeleceu uma linha imaginária 100 léguas a oeste de Cabo Verde e garantiu aos castelhanos a posse das terras que ficassem na porção oriental desse marco.
Vendo que sua quota-parte era composta
majoritariamente por água e dificultava a navegação dos portugueses pelo
Atlântico, o rei lusitano subiu nas tamancas. Para evitar o conflito armado
entre os dois países, o papa mediou as negociações que resultariam no célebre Tratado
de Tordesilhas. Com esse acordo, a linha divisória foi movida para 370
léguas a oeste de Cabo Verde, o que garantiu a Portugal uma porção generosa da América
do Sul.
Resta dizer que uma expedição secreta, comandada por Duarte
Pacheco Pereira, visando identificar os territórios que pertenciam a
Portugal ou a Castela, à luz do Tratado de Tordesilhas, chegou à costa
brasileira em 1498, à altura dos atuais estados do Amazonas e do Maranhão —
antes, portanto, da primeira viagem comprovada de um europeu ao território
brasileiro, feita pelo espanhol Vicente Yáñez Pinzón, cujo desembarque se
deu em 26 de janeiro de 1500. Mas a descoberta de Pacheco foi mantida em
segredo por determinação do governo português, devido à concorrência espanhola
na conquista da América do Sul, até que uma nova missão (a de Cabral) “tomasse
posse oficialmente” daquelas terras.
Face ao exposto, Portugal tinha conhecimento da existência
do que viria a ser o Brasil quase uma década antes do “descobrimento” e,
tecnicamente, já tinha posse das terras quando Cabral nelas desembarcou,
em abril de 1.500.
Continua numa próxima postagem.