quinta-feira, 23 de julho de 2020

MIMI E COCÓ

Enquanto trouxas como este que vos escreve perdem tempo com questiúnculas e factoides — como a acusação de genocídio feita pelo ministro Gilmar Mendes ao general interino da Saúde —, o alto tucanato se vê emparedado por novos desdobramentos da Lava-Jato

José Seripieri Júnior, fundador da corretora de planos de saúde Qualicorp, foi preso temporariamente na última terça-feira, 21, no escopo da Operação Paralelo 23, que mira suposto caixa dois de R$ 5 milhões na campanha do senador José Serra na eleição de 2014. As relações e contatos de Júnior — como o empresário é conhecido — com o mundo político se davam sobretudo no PT, especialmente com o ex-presidente picareta que foi condenado a 25 anos, 11 meses e 10 dias de prisão, mas foi libertado “provisoriamente”, depois de passar 580 dias numa cela VIP em Curitiba — que lhe serviu de moradia, gabinete político e palanque eleitoreiro —, graças ao elevado espírito de justiça de alguns togados supremos. Mas também incluíam tucanos como Serra e Geraldo Alckmin.

Os três políticos estavam entre os convidados do suprapartidário casamento do empresário, em junho de 2014, com Daniela Filomeno, ex-diretora de comunicação do Grupo Doria e ex-conselheira do Lide, ambos fundados pelo governador paulista, João Doria. Também compareceram ao casamento, em um luxuoso condomínio em Bragança Paulista (SP), o então prefeito petralha de São Paulo, 

Fernando Haddad, e a então senadora (hoje ex-petralha) Marta Suplicy.
Em sua delação premiada, Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda e da Casa Civil nos governos Lula e Dilma, relatou que os elos políticos de Júnior foram construídos a partir da amizade dele com o médico Roberto Kalil Filho, diretor do centro de cardiologia do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, que atendia os ex-presidentes petistas enquanto eles ocupavam o Palácio do Planalto.

Voltando agora à rusga entre Gilmar Mendes e os militares, Diogo Mainardi afirma que o togado não vai derrubar Bolsonaro, até porque o presidente faz exatamente o que ele quer: já chutou Sergio Moro, já se acertou com a PGR para exterminar a Lava-Jato e já indicou um de seus assessores para a AGU. Mendes só teve tanto poder assim com Michel Temer. E como é um homem de sorte, o ministro foi premiado também com o processo de Flávio Bolsonaro, do qual é relator. O fato de ter o destino do filho do presidente no bolso da toga confere-lhe um crédito ainda maior.

Gilmar não tem o menor interesse em patrocinar um impeachment, minando um acordo que lhe é imensamente vantajoso. Semanas atrás, ele espalhou para a imprensa que foi ao Palácio do Planalto e aconselhou Bolsonaro sobre a melhor maneira de se esquivar de uma denúncia no Tribunal Penal Internacional, por crimes cometidos durante a epidemia de Covid-19. De acordo com o relato dos jornalistas, o ministro foi ainda mais longe: assumindo o papel de advogado do presidente — no lugar de Frederick Wassef e Karina Kufa —, ele orientou o capitão sobre sua defesa no próprio STF.

O Exército se irritou porque Gilmar, disparando uma tolice, culpou-o pela calamidade da Covid-19. De fato, enquanto os militares fabricavam cloroquina, nos laboratórios faltavam reagentes para testar o novo coronavírus e nas UTIs, remédios essenciais para salvar vidas. Todavia, a responsabilidade pela tragédia não é do Exército, mas de Jair Bolsonaro, que teria de ser julgado e cassado por causa disso. 

Mas não é o que Gilmar Mendes pretende fazer. Ele é parceiro do presidente, tanto que, para contornar a disputa com os generais, conversou diretamente com o chefe do Executivo — e, mais uma vez, vazou tudo para a imprensa. Por essas e outras, os bolsonaristas podem relaxar. Em vez de derrubar o presidente, o supremo togado vai domá-lo e cavalgá-lo até 2022.

Em campanha, o candidato Jair Bolsonaro teve um sonho: criar mais dez cadeiras no Supremo, aumentando a composição da Corte para 21 juízes e, desse modo, “mudar o rumo das decisões que têm envergonhado o país” — disse ele nos idos de 2018. Uma solução ao molde venezuelano, que por motivos óbvios nem chegou a ser tentada. O STF, no entanto, continuou ocupando lugar de destaque nas obsessões do presidente.

Bolsonaro não foi o primeiro nem será o último mandatário a vivenciar a ilusão de controle sobre o tribunal detentor da última palavra a respeito do que permite ou não a Constituição, embora tenha sido o único do período pós-redemocratização a falar em interferir na organização e, portanto, nas decisões do tribunal.

A ditadura aumentou os assentos de onze para dezesseis em 1965. Quatro anos depois três ministros foram afastados por força do AI-5, dois se aposentaram em solidariedade e no governo Médici retornou-se ao desenho original. De lá para cá, os governos do PT foram os que mais indicaram ministros. Lula nomeou oito e Dilma, cinco, quatro dos quais hoje aposentados e dois falecidos. Bolsonaro terá direito a duas indicações, que somariam doze, caso a realidade não se contrapusesse aos devaneios de sua mente.

Mesmo restrito às vagas de Celso de Mello e Marco Aurélio Mello, o capitão produz um espalhafato que movimenta hoje sete nomes. Já foram nove quando Sergio Moro integrava a lista e antes de Ives Gandra Filho declinar da sondagem. Uns mais, outros menos afoitos, são os seguintes: André Mendonça (ministro da Justiça), Jorge Oliveira (ministro da Secretaria-Geral da Presidência), Augusto Aras (procurador-geral), William Douglas (juiz federal), Marcelo Bretas (juiz federal), João Otávio de Noronha (presidente do Superior Tribunal de Justiça) e Humberto Martins (eleito próximo presidente do STJ). Nem todos cumprem os pré-requisitos de notório saber jurídico e reputação ilibada, mas todos compartilham afinidades ideológicas e/ou religiosas com o presidente, que tem se notabilizado por manipular a vaidade dos cotados, que, em alguns casos, se traduz em pura vassalagem.

Bolsonaro tem prazo até novembro para definir o escolhido para a vaga do decano, mas até lá vai se valendo do espírito prestativo de um e de outro. Aras se reveza entre agrados e desagrados, Mendonça assume o papel de advogado de Bolsonaro, Bretas o presenteia com sua presença em ato político, Oliveira reitera manifestações de lealdade ao chefe, Martins intimou, como corregedor do CNJ, o juiz Flávio Itabaiana a explicar a razão de seu desagrado com a concessão de foro especial a Flávio Bolsonaro, e Noronha inovou ao beneficiar com prisão domiciliar a fugitiva mulher de Fabrício Queiroz.

Escaldado por exemplos anteriores, Bolsonaro não se contenta com promessas, e por isso esses candidatos “matam no peito” previamente. Sem garantia de que não estão caindo no conto da vaga.

Com Veja, Diogo Mainardi e Dora Kramer.