terça-feira, 18 de agosto de 2020

NÃO ERA PARA SER ASSIM

 

Reza o artigo 5º da Constituição Federal que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes(...)”. Mas nenhum de seus parágrafos, incisos ou alíneas dispõe o que se vê na prática, ou seja, que alguns são “mais iguais” que os outros.

Num passado não muito remoto, quando éramos felizes e não sabíamos, o parágrafo único do artigo 1º da Carta Magna estabelecia que “Todo o poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido”. Ao rascunharem a versão promulgada em 1988, os constituintes promoveram uma alteração sutil na redação do texto, que passou a ser “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.Assim, a “Constituição Cidadã” tirou-nos o país que tínhamos e nos transformou em escravos dos nossos “representantes”, pois a partir de então o poder deixou de ser exercido em nome do povo

Em outras palavras, nós elegemos os nossos “representantes”, que, em tese, exercem o poder em nosso nome. Só que eles fazem o que querem, como querem e quando querem, sem prestar contas a ninguém e, não raro, em benefício próprio, seja para aumentar a burocracia que os mantém, seja para angariar votos para a próxima eleição, seja para proteger os seus “companheiros representantes”.

Também em tese, cabe ao povo decidir, nas urnas, o destino dos políticos que mijam fora do penico. Na prática, porém, a teoria é outra, sobretudo se o “direito de voto” é estendido “democraticamente” aos analfabetos, ignorantes, apedeutas e desinformados que, desgraçadamente, compõem a maioria do eleitorado tupiniquim. E um título de eleitor nas mãos de um descerebrado é tão perigoso quanto uma caixa de fósforos nas mãos de um chimpanzé num paiol de pólvora.

Num país onde o futuro é duvidoso e o passado, incerto, é o poste que mija no cachorro, ou por outra, parafraseando o eminente ministro Gilmar Mendes, sobre quem falaremos mais adiante, não é o cachorro que abana o rabo, mas o rabo que abana o cachorro. Nesse “samba do crioulo doido”, as leis são escritas por políticos que se elegem para roubar e roubam para se reeleger. Quando um “representante” faz algo “errado”, ou seja, que contrarie os interesses dos representados, seus pares se apressam em mudar a lei para “transformar o errado em certo”. Em suma: deixamos a raposa tomando conta do galinheiro e damos a chave do berçário a Herodes. E depois reclamamos... de quem?

A única maneira de despertar o “gigante adormecido” sem o risco de ele ter uma síncope assim que tomar pé da situação seria devolver o país aos silvícolas, pedir desculpas pelo estrago e começar tudo outra vez. Para limar do Executivo, do Legislativo e do Judiciário os usurpadores travestidos de representantes do povo, só mesmo uma nova carta magna, mas que fosse “menos cidadã e mais pé no chão”. A que temos há 32 anos foi remendada mais de uma centena de vezes (em comparação, a Constituição dos EUA, promulgada dois séculos antes, tem apenas 7 artigos e recebeu 27 emendas ao longo das últimas 23 décadas). Os constituintes de 1988 distribuíram diretos a rodo, mas jamais apontaram de onde viriam os recursos para bancá-los. No texto promulgado, a palavra “direito” é mencionada 76 vezes; "dever", em quatro oportunidades; "produtividade” e “eficiência” aparecem duas e uma vez, respectivamente.

O que esperar de um país que tem 76 direitos, quatro deveres, duas produtividades e uma eficiência? Na melhor das hipóteses, uma política pública de produção de leis, regras e regulamentos que quase nunca guardam relação com o mundo real. A atual pandemia sanitária e suas consequências deletérias em nossa já combalida economia, somadas à constante disputa entre os Poderes, à desmoralização do mundo político, à crise de representação e à disfuncionalidade crônica do Estado nascido dos sonhos dos constituintes de 1988, apontam para uma única solução: repensar os alicerces de nosso Estado Democrático de Direito, em especial no que concerne ao sistema político vigente, e adotar as medidas necessárias ao restabelecimento da normalidade e da pacificação institucional pela qual anseia a sociedade.

Pode-se argumentar que momento atual não seja o mais propício, e não há como discordar desse argumento. Mas é inevitável reconhecer que já passou da hora de considerarmos seriamente a possibilidade de reescrever a Constituição, visto que a atual, por sua ânsia de a tudo regular e prover, trava o desenvolvimento pleno da vida nacional. Afinal, não há país que cresça quando a quase totalidade do Orçamento é consumida pela folha de pagamento do funcionalismo e benefícios e vinculações de toda sorte, e as crises fiscais são contornadas mediante o aumento da carga tributária — o que atualmente é impensável e impraticável — ou por remédios institucionais cada vez menos eficazes.

Para além disso, o atual sistema representativo está falido, com partidos políticos representam-se a si mesmos com mecanismos que favorecem o fisiologismo, o paternalismo e o patrimonialismo, e que nada dizem aos eleitores. O poder econômico quase sempre prevalece sobre o interesse dos cidadãos em geral, atrelando perigosamente a corrupção ao sistema político.

É possível — e até provável — que o atual cenário não guarda a menor semelhança com aquele almejados pelos constituintes de 1988, que pretendiam assegurar o bem-estar e o desenvolvimento por força de “cláusulas pétreas” que exaurem o Estado a pretexto de cumprir direitos sociais. Resta saber de quem. Talvez daqueles que eu citei nos parágrafos de abertura, que “são mais iguais perante a lei que os demais”.

Triste Brasil.