Reza o artigo
5º da Constituição Federal que “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes(...)”.
Mas nenhum de seus parágrafos,
incisos ou alíneas dispõe o que se vê na prática, ou seja, que alguns
são “mais iguais” que os outros.
Num passado não muito remoto, quando éramos felizes e não
sabíamos, o
parágrafo único do artigo 1º da Carta Magna estabelecia que “Todo o
poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido”. Ao rascunharem a
versão promulgada em 1988, os constituintes promoveram uma alteração sutil na
redação do texto, que passou a ser “Todo o poder emana do povo, que o exerce
por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição.”
Em outras
palavras, nós elegemos os nossos “representantes”, que, em tese, exercem
o poder em nosso nome. Só que eles fazem o que querem, como querem e quando
querem, sem prestar contas a ninguém e, não raro, em benefício próprio, seja
para aumentar a burocracia que os mantém, seja para angariar votos para a
próxima eleição, seja para proteger os seus “companheiros representantes”.
Também em tese, cabe ao povo decidir, nas urnas, o destino dos
políticos que mijam fora do penico. Na prática, porém, a teoria é outra, sobretudo
se o “direito de voto” é estendido “democraticamente” aos analfabetos,
ignorantes, apedeutas e desinformados que, desgraçadamente, compõem a maioria
do eleitorado tupiniquim. E um título de eleitor nas mãos de um descerebrado é
tão perigoso quanto uma caixa de fósforos nas mãos de um chimpanzé num paiol de
pólvora.
Num país onde o futuro é duvidoso e o passado, incerto, é o
poste que mija no cachorro, ou por outra, parafraseando o eminente ministro Gilmar
Mendes, sobre quem falaremos mais adiante, não é o cachorro que abana o
rabo, mas o rabo que abana o cachorro. Nesse “samba do crioulo
doido”, as leis são escritas por políticos que se elegem para roubar e
roubam para se reeleger. Quando um “representante” faz algo “errado”, ou seja, que
contrarie os interesses dos representados, seus pares se apressam em mudar a lei
para “transformar o errado em certo”. Em suma: deixamos a raposa tomando conta
do galinheiro e damos a chave do berçário a Herodes. E depois reclamamos...
de quem?
A única maneira de despertar o “gigante adormecido”
sem o risco de ele ter uma síncope assim que tomar pé da situação seria
devolver o país aos silvícolas, pedir desculpas pelo estrago e começar tudo
outra vez. Para limar do Executivo, do Legislativo e do Judiciário os
usurpadores travestidos de representantes do povo, só mesmo uma nova carta
magna, mas que fosse “menos cidadã e mais pé no chão”. A que temos há 32 anos
foi remendada mais de uma centena de vezes (em comparação, a Constituição dos
EUA, promulgada dois séculos antes, tem apenas 7 artigos e recebeu 27 emendas ao
longo das últimas 23 décadas). Os constituintes de 1988 distribuíram diretos
a rodo, mas jamais apontaram de onde viriam os recursos para bancá-los.
No texto promulgado, a palavra “direito” é mencionada 76 vezes; "dever",
em quatro oportunidades; "produtividade” e “eficiência”
aparecem duas e uma vez, respectivamente.
O que esperar de um país que tem 76 direitos, quatro
deveres, duas produtividades e uma eficiência? Na melhor das hipóteses, uma
política pública de produção de leis, regras e regulamentos que quase nunca
guardam relação com o mundo real. A atual pandemia sanitária e suas
consequências deletérias em nossa já combalida economia, somadas à constante
disputa entre os Poderes, à desmoralização do mundo político, à crise de
representação e à disfuncionalidade crônica do Estado nascido dos sonhos dos constituintes
de 1988, apontam para uma única solução: repensar os alicerces de nosso Estado
Democrático de Direito, em especial no que concerne ao sistema político vigente,
e adotar as medidas necessárias ao restabelecimento da normalidade e da
pacificação institucional pela qual anseia a sociedade.
Pode-se argumentar que momento atual não seja o mais
propício, e não há como discordar desse argumento. Mas é inevitável reconhecer
que já passou da hora de considerarmos seriamente a possibilidade de reescrever
a Constituição, visto que a atual, por sua ânsia de a tudo regular e prover,
trava o desenvolvimento pleno da vida nacional. Afinal, não há país que cresça quando
a quase totalidade do Orçamento é consumida pela folha de pagamento do
funcionalismo e benefícios e vinculações de toda sorte, e as crises fiscais são
contornadas mediante o aumento da carga tributária — o que atualmente é
impensável e impraticável — ou por remédios institucionais cada vez menos
eficazes.
Para além disso, o atual sistema representativo está falido,
com partidos políticos representam-se a si mesmos com mecanismos que favorecem
o fisiologismo, o paternalismo e o patrimonialismo, e que nada dizem aos
eleitores. O poder econômico quase sempre prevalece sobre o interesse dos
cidadãos em geral, atrelando perigosamente a corrupção ao sistema político.
É possível — e até provável — que o atual cenário não guarda
a menor semelhança com aquele almejados pelos constituintes de 1988, que
pretendiam assegurar o bem-estar e o desenvolvimento por força de “cláusulas
pétreas” que exaurem o Estado a pretexto de cumprir direitos sociais. Resta
saber de quem. Talvez daqueles que eu citei nos parágrafos de abertura, que “são
mais iguais perante a lei que os demais”.