O que acontece no Rio de Janeiro frequenta o terreno do inacreditável, senta praça no campo do inaceitável e disso dão conta os fatos: seis governadores acusados de corrupção, um deles na cadeia condenado a quase 300 anos de prisão; o atual sob risco de impeachment tendo sido afastado do cargo no âmbito de investigação que envolve o vice e o presidente da Assembleia Legislativa; inclui a contaminação das instâncias administrativas e políticas pelo crime organizado em milícias/narcotráfico; e mostra um quadro de finanças e serviços públicos deteriorados.
Acrescente-se à tragédia a inventividade
malsã de um prefeito que achou por bem organizar algo nunca visto: uma gangue
de brutamontes para, em nome dele, intimidar cidadãos na porta de hospitais a
fim de impedi-los de relatar à imprensa as deficiências (para dizer o mínimo)
de que são vítimas duplamente: na falta de atendimento adequado à saúde e na
ausência de voz ativa junto ao poder público.
Não é pouco nem tampouco a população do
estado governado a partir da cidade que por natureza segue maravilhosa haveria
de querer mais. Sim, a culpa é dos governantes que sucessivamente integram e se
entregam a uma rotina de ilicitudes, inépcia, conivência e indiferença ao
bem-estar coletivo. Mas a responsabilidade é também da população. Não só
daquela composta de eleitores, cujos equívocos guardam semelhança com inúmeros
cometidos Brasil afora. Regional e nacionalmente falando. O pecado original
aqui é o da complacência alimentada pelo mito de que cariocas somos bacanas,
dados a uma risonha malandragem, vocacionados a estreitar laços de amizade com
a transgressão.
“Poderes apodreceram no Rio num processo
em que a população, e não só o eleitor, foi indulgente por anos”. Em termos de
generalização a ideia é falsa, embora contenha uma meia verdade lamentavelmente
forte o bastante para nos trazer até esse poço em que nos encontramos
encalacrados sem ainda enxergar o fundo. O problema não se limita ao voto, mas
se estende à maneira como governantes e governados lidam com a cidade. Falemos
dela, pois é a parte mais visível da questão e para o restante do estado serve
de modelo.
Houve um tempo, e foi longo porque um
buraco desse tamanho não se cava do dia para a noite, em que o carioca achava
normal a convivência com bicheiros tratados na imprensa como celebridades,
festejados publicamente por políticos sob a indiferença geral sobre a real
natureza da atividade. Longe de inocente, era o cerne da organização dos
criminosos.
Houve um tempo em que o carioca
bem-vestido, alimentado e estudado da Zona Sul tratava chefões de tráfico como
ídolos, aplaudia fugas de presídios e não via nada de anormal na participação
deles (por interpostas pessoas) em campanhas eleitorais.
Houve um tempo em que governantes
consideravam ofensa pessoal a denúncia de que havia territórios dominados pelo
crime em formação acelerada nas favelas que se expandiam à revelia da atuação
do estado. Quem, transitando do Leblon em direção a São Conrado, não via a
expansão espantosa dos morros do Vidigal e da Rocinha? Todos víamos, mas
fazíamos de conta que não enxergávamos o significado daquilo e suas subjacentes
consequências. Governados motivados por uma visão equivocadamente romântica da
coisa. Governantes por uma perspectiva propositadamente conveniente sob a
óptica eleitoral.
Houve um tempo, e não faz muito, em que um
tipo como Sérgio Cabral era abraçado pela elite bem-pensante como ícone
da modernidade e expressão da salvação da lavoura. Viu-se depois o que havia
por trás da pujança marqueteira em causa própria.
Houve todo esse tempo em que a podridão se
acelerou e se instalou, mas já é tempo de esse tempo passar. A despeito de
todas as homenagens a ser prestadas ao realismo, há razões para fazer concessão
ao otimismo.
A rapidez com que a Câmara Municipal, o
Ministério Público e a Polícia Civil reagiram às investidas da gangue de Marcelo
Crivella é uma delas. Outra diz respeito às cobranças feitas aos referidos
governadores sobre as quais estão sendo obrigados a prestar contas. Cada vez
com velocidade maior. A maioria foi pega depois do fim dos mandatos. Dois mais
recentes (Luiz Fernando Pezão e Wilson Witzel), chamados “aos
costumes” em pleno exercício do cargo.
E assim vai ganhando tração o bom combate
cujo efeito é a redução da margem de manobra da turma da pilantragem. Cabe ao
eleitor não mais lhe prestar reverência a fim de enxergarmos a luz no fim do
túnel que, queira o Redentor, ainda vai desembocar na retomada dessa maravilha
de cenário que é o meu, o nosso, Rio.
Texto de Dora Kramer