sábado, 19 de setembro de 2020

MANDA QUEM PODE, OBEDECE QUEM TEM JUÍZO


A Constituição Cidadã, escrita sob os efeitos da ressaca resultante de 21 anos de ditadura, foi pródiga na distribuição de direitos e benefícios, mas omissa em apontar a origem dos recursos que bancaria a farra do boi. E, para não tornar a Carta ainda mais prolixa, os constituintes criaram um sem-número de dispositivos que deveriam ser regulamentados posteriormente por leis ordinárias. Em outras palavras, fizeram como um empreiteiro que acompanha a fundação e larga a construção do prédio nas mãos dos pedreiros.

Não só por isso, mas também por conta disso, nossa corte constitucional virou curva de rio: do uso medicinal da maconha ao casamento homoafetivo, passando por questões e alta indagação jurídica — como quem fica com o cachorro quando o casal se divorcia —, tudo vai parar no colo do Colegiado. Ou das Turmas, ou de cada um dos togados, que também tem competência para decidir monocraticamente sobre as mais variadas questões.

Além de ser o “guardião da Constituição”, o Supremo, entre outras atribuições, funciona como derradeira instância do Judiciário e foro especial, onde são processados e julgados parlamentares e outros agentes públicos de alto coturno — aqueles que "são mais iguais perante a lei do que os outros" e só vão para a cadeia no dia de São Nunca.

Como o Direito não é uma ciência exata, é comum (e até natural) os ministros divergirem de seus pares na interpretação da lei — como diz o ditado, “de cabeça de juiz, barriga de gestante e bunda de nenê...” É certo que o ordenamento jurídico e o ato de decidir vão muito além de um simples olhar sobre a lei e a interpretação forjada que daí se queira dar. Há toda uma plêiade de valores e princípios, expressos ou não, que devem dar rumo a interpretação caso a caso. Essa carga transpõe a vontade pessoal do julgador e sua concepção ideológica e, em tese, deveria servir de parâmetro para todo e qualquer julgamento. Mas, na prática, a teoria costuma ser outra.

O Supremo é um colegiado, e de um colegiado esperam-se decisões colegiadas — ainda que não necessariamente consensuais, daí a Corte ser composta por 11 ministros e cada uma das Turmas, por 5 integrantes, de modo a evitar o empate. Não obstante, por uma série de motivos que fogem ao escopo desta despretensiosa abordagem, as decisões monocráticas — ou seja, proferidas isoladamente, por um único magistrado — vêm aumentando exponencialmente.

Observação: Cabe às Turmas julgar Recursos Extraordinários, Agravos de Instrumento, Habeas Corpus e uma vasta gama de apelos que não questionam precipuamente a inconstitucionalidade de leis, já que decisões dessa natureza devem ser tomadas exclusivamente em Plenário.

Os magistrados têm entendimentos diversos sobre os mais variados assuntos, e não se atêm à letra fria da lei ao decidir as mais variadas questões — e nem deveriam, mas isso é outra conversa. Valendo-se da hermenêutica, cada decisor lê nas entrelinhas a intenção do legislador e dá a sentença com base em suas próprias convicções. O problema é que essa hermenêutica vem se tornando cada vez mais criativa, como evidencia a frequência com que os conspícuos magistrados cruzam a linha que separa a interpretação da norma jurídica do ato de legislar.

A divisão do tribunal em Turmas foi pensada para fazer frente à quantidade crescente de processos em tramitação e em meio aos movimentos políticos que levaram à Revolução de 1930. Atualmente, o mandato do presidente da Corte é de dois anos, e o dos presidentes das turmas, de um ano. Embora inexista hierarquia entre os ministros — parafraseando o vice decano Marco Aurélio Mello, “acima de cada um deles, só o colegiado” —, cabe ao presidente da Corte e ao presidente de cada uma das Turmas coordenar os respectivos trabalhos. 

Ocupar a presidência não torna o magistrado hierarquicamente superior a seus pares, mas lhe dá um poder que os demais não possuem, qual seja o de definir a pauta de julgamentos. Isso lhe permite antecipar o exame de uma ação em detrimento de outra, empurrar uma terceira para as calendas gregas, enfim... Para entender melhor a dimensão desse poder, tomemos o exemplo da 2ª Turma, ora presidida pelo ministro Gilmar Mendes e composta pelos ministros Celso de Mello, Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia — além do próprio Gilmar, naturalmente. 

Fiel a seu estilo (que prefiro não comentar), sua excelência vem se se aproveitando da ausência decano para anular condenações de réus da Lava-JatoCom o inestimável compadrio de Lewandowski, aquele que, quando presidente do TSE, atuou como mentor intelectual da absolvição da chapa Dilma/Temer (por excesso de provas, como ironizou o ministro-relator do processo), vem travando verdadeira cruzada em prol do restabelecimento do império da impunidade. 

Nunca é demais lembrar que, após um de seus muitos bate-bocas memoráveis com Gilmar Mendes, o ministro Luís Roberto Barroso disse em entrevista à Folha: "No Supremo, você tem gabinete distribuindo senha para soltar corrupto. Sem qualquer forma de direito e numa espécie de ação entre amigos." Tire o leitor suas próprias conclusões.

Continua...