terça-feira, 13 de outubro de 2020

SEMIDEUSES TOGADOS

 

Por óbvia e imediata, a associação do Monte Olimpo com a morada dos deuses da mitologia grega (sobretudo pelos fãs de HQs) fez da montanha homônima uma quase que ilustre desconhecida. Mas ela existe no mundo real, fica na Grécia, mais exatamente entre a Tessália e a Macedônia, e seu cume se eleva a uma altitude de 2.917 em relação ao Mar Egeu.

Na política tupiniquim, segundo o antropólogo, sociólogo, historiador, escritor e político Darcy Ribeiro, “o Senado é melhor que o paraíso”, pois chega-se lá sem precisar morrer, trabalha-se pouco (três dias por semana, em média), ganha-se muito (*), participa-se de sessões plenárias duas vezes por semana e não se tem a responsabilidade de governar e administrar, só de (se quiser) discursar e votar.

(*) Além do salário mensal de R$ 33.763, o parlamentar recebe auxílio-moradia de R$ 5.500, cota de serviços gráficos de R$ 8.500, cota parlamentar de R$ 41.844,45 e verba de gabinete de R$ 160 mil para contratar até 55 servidores comissionados.

Além de vassalos de sobra para fazer os trabalhos intelectuais e manuais, servir-lhes o cafezinho e pajeá-los pelos corredores e sessões, desfrutam os nobres senadores de incontáveis mordomias — de automóvel com motorista a viagens internacionais “all inclusive”, passando por auxílio moradia, assistência médica e odontológica de primeiríssima qualidade, reembolso de despesas de todo tipo, ajudas isso e aquilo mais uma penca de penduricalhos de dar inveja a uma Árvore de Natal. E só precisam se preocupar com a reeleição no final do sétimo ano do mandato.

Se o Senado é melhor que o paraíso, o STF é melhor que o Senado. Além de gozarem de mais regalias que os parlamentares, os togados supremos não precisam se preocupar com reeleição: uma vez aprovados e empossados, tornam-se inamovíveis e permanecem no cargo até os 75 anos (de idade), quando então sua aposentadoria é compulsória.

Nosso Judiciário é o mais caro do mundo. Em 2014, manter esse mastodonte respirando custou 1,2% do PIB — a título de comparação, os EUA gastaram 0,14% e a Itália, 0,19% no mesmo ano. Só no STF, há — ou havia, porque esses números são de 2017 — 1150 funcionários concursados e cerca de 1700 terceirizados. Cada ministro tem direito a 40 assessores e pode recrutar até três juízes auxiliares (haja gente para falar data venia).

ObservaçãoA possibilidade de os ministros contarem com juízes auxiliares foi introduzida no regimento do Supremo em 2007, e em 2009 foi sancionada lei concedendo-lhes poderes para conduzir atos de instrução processual, com destaque para interrogatório (até então remetia-se todo o processo para o juiz da comarca em que se encontrasse o depoente, e ao magistrado, alheio a seu andamento, restaria estudá-lo a partir do zero. Lotado no gabinete do ministro, o juiz auxiliar acompanha o processo desde sua chegada ao tribunal, e basta pegar um avião para ir ao encontro do depoente.

O orçamento da Corte para 2018 previa gastos de R$ 714 milhões. Somados aos do STJ e do TST, o total passa dos R$ 3 bilhões. Considerando que o TSE consome outros R$ 2,4 bilhões, não é preciso ser um gênio das finanças para saber por que pagamos uma fábula em impostos e nunca sobra dinheiro para investir em Saúde, Educação, Segurança etc. Como disse certa vez o economista e ex-ministro Antonio Delfin Netto, o Brasil virou uma Ingana, com impostos da Inglaterra e serviços de Gana.   

Segundo matéria assomada por Lucio Vaz e publicada na Gazeta do Povo, foram gastos pelo STF, nos últimos quatro anos, R$ 23 milhões com viagens aéreas, diárias, auxílio-moradia e ajuda de custo. Os ministros têm direito a passagens de ida e volta para casa e recebem até R$ 100 mil para mudança. Despesas com transporte aéreo somaram R$ 5,4 milhões e as diárias, mais R$ 8,8 milhões, sendo R$ 866 mil para o exterior. Só as passagens de Dias Toffoli para São Petersburgo, às vésperas da Copa do Mundo de 2018, e para a Comissão de Veneza, em outubro do mesmo ano custaram, respectivamente, R$ 48 mil e R$ 41,5 mil. Nas duas ocasiões o togado se fez acompanhar de Fábio Marzano, assessor de Assuntos Internacionais, e do juiz Márcio Boscaro. Entre passagens e diárias, as viagens custaram R$ 315 mil aos cofres públicos (leia-se “aos contribuintes”).

A sabatina de Kássio Nunes Marques — o candidato tubaína do capitão cloroquina — foi marcada para o próximo dia 21. Para ser aprovado, ele precisa de maioria simples no plenário do Senado. Essas nomeações são eminentemente políticas e as sabatinas, meramente protocolares. Portanto, dá-se de barato que o currículo anabolizado com cursos não realizados e dissertação de mestrado com trechos idênticos a passagens de artigos de outro advogado não impedirão a aprovação do desembargador piauiense — não nesta republiqueta de almanaque; em qualquer democracia minimamente consolidada a história seria outra.

De 1889 até hoje, somente cinco indicações presidenciais para o Supremo foram barradas no Senado, todas no final do século XIX, durante o governo do Marechal Floriano Peixoto. Com o passar do tempo e ao longo de cinco repúblicas (*) e seis constituições, o que era para ser uma Corte constitucional tornou-se última instância da Justiça criminal e única instância com competência para processar e julgar agentes públicos com direito a foro especial por prerrogativa de função.

(*) Os historiadores dividem o período transcorrido desde o final da monarquia até os dias atuais em cinco repúblicas: 1) “República Velha” (1889-1930); 2) “Era Vargas” ou “Nova República” (1930-1945); 3) “República Populista” (1945-1964); 4) “Ditadura Militar” (1964-1985); “Nova República” (1985-?).

De acordo com o artigo 94 da Constituição de 1988 — onde a palavra “direito” aparece 76 vezes , "dever" surge em quatro oportunidades e "produtividade” e “eficiência”, duas e uma vez, respectivamente — um quinto das vagas dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça deve ser preenchido por membros do Ministério Público com mais de dez anos de carreira e por advogados com notório saber jurídico, reputação ilibada e mais de dez anos de atividade profissional. No artigo 115, inciso I, idêntica previsão se aplica aos Tribunais Regionais do Trabalho. Por alguma razão, nada parecido vale para o Supremo, Além de ser indicado pelo presidente da República, ao candidato a ministro basta ser brasileiro nato, ter entre 35 e 65 anos, reputação ilibada, notável saber jurídico e obter no plenário do Senado pelo menos 41 dos 81 votos possíveis. Não se lhe exige sequer diploma de bacharel em Direito.

Continua...