Preocuparmo-nos com a eleição presidencial nos Estados
Unidos quando vivemos sob os desmandos de um morubixaba medíocre — que usa com
igual mediocridade sua ordinária esferográfica Bic — e a semanas das eleições
municipais — com uma trupe de feira de horrores postulando a prefeitura da maior
metrópole da América Latina (para não falar no quadro igualmente desolador que
se descortina nas demais 5.569 cidades brasileiras) — seria como tomar partido numa
briga de vizinhos estando em pé de guerra com quem vive sob nosso
próprio teto.
Seria, não fosse o fato de a escolha entre o republicano Donald Trump e o democrata Joe Biden ter repercussões globais, desde importantes resoluções econômicas — em que se destaca a atual briga com a China em torno do 5G — até o questionamento de um modelo de fazer política, ao redor da postura histriônica de um líder que nunca se furtou a espalhar inverdades e provocações pelas redes sociais, muitas vezes alimentadas por xenofobia e preconceitos (por quem nosso presidente morre de amores, embora seja por ele tratado não com o respeito devido a um igual, mas sim como um fã patético e, eventualmente, útil).
Costumo dizer que o imprevisto pode ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos. Por óbvio, o que é imprevisto não pode ser controlado, e como bem ensinou o Conselheiro Acácio (personagem do romance O Primo Basílio, do escritor português Eça de Queiroz), o problema com as consequências é que elas sempre vêm depois. Não fosse a pandemia da Covid-19 trazer a reboque uma crise econômica como não se via desde 1929, a reeleição de Trump estaria garantida. Mas ele perdeu o favoritismo, Biden se tornou a bola da vez, e uma derrota do republicano trará consequências — não só para o Brasil, naturalmente, mas preocupa-nos mais saber como esse imbróglio vai nos afetar.
Se as previsões se confirmarem, Trump entrará para a seleta confraria dos ex-presidentes expelidos da Casa Branca ao final do primeiro mandato — a exemplo de George Bush pai e de Jimmy Carter. Oficialmente, a eleição termina amanhã, e pelo fato de o voto ser facultativo (para garantir ao cidadão a liberdade de escolher entre votar ou não, embora sirva para desestimular a participação ativa das parcelas mais pobres da população, facilitando a reprodução de oligarquias políticas no poder), atrair os eleitores às urnas sempre foi uma tarefa árdua para os candidatos. Mas não desta vez.
Até a última quinta-feira, mais de 80 milhões de americanos já haviam votado. Esse número corresponde a mais da metade do total de votos do pleito de 2016 e, em tese, bastaria para liquidar a fatura. Mas na prática a teoria é outra, e não só não sabemos quem sairá vencedor, nem quando quando saberemos. Em situações normais, sabe-se no dia da eleição quem venceu a corrida presidencial.
Desta vez, no entanto, a contagem de votos pode levar muito mais tempo, já que mais pessoas estão votando pelo correio ou remotamente. Sem mencionar a possibilidade de o candidato menos votado nas
urnas sagrar-se vencedor — como aconteceu em 2016, quando Hillary Clinton obteve mais votos
que Trump, mas foi o homem da peruca alaranjada que se mudou de mala e
cuia para a Casa Branca.
O bizarro sistema eleitoral americano é confuso e difícil de entender — e mais ainda de explicar, sobretudo para e por quem está acostumado com a lógica do sistema majoritário. Cá em Pindorama, os prefeitos de municípios com mais de 200 mil eleitores, os governadores de estado e o presidente da República são eleitos por maioria absoluta (50% dos votos válidos + 1 voto). Quando nenhum dos candidatos alcança esse quórum no primeiro turno, os eleitores voltam às urnas para escolher entre os dois mais votados. No segundo turno não existe quórum; vence quem obtiver mais votos.
Lá na terra do Tio Sam, o sistema eleitoral não é exatamente bipartidário, já que existam dezenas de partidos políticos além do Democrata (liberal) e do Republicano (conservador). Mas a maioria não figura nas cédulas de todos os estados, e alguns estados têm inclinação partidária definida — como o republicano Texas e o democrata Washington (não confundir com a capital federal).
Esse modelo foi criado no XVIII, quando ainda não havia eleições presidenciais diretas em nenhuma parte do mundo, visando garantir a união das ex-colônias britânicas, e continua sendo usado a pretexto de evitar que estados menos populosos sejam ofuscados numa eleição decidida pelo voto popular nos grandes centros urbanos. Na prática, porém, a disputa fica concentrada nos "swing states" — como Arizona, Geórgia, Michigan, Nevada, Carolina do Norte, Pensilvânia e Wisconsin — que "oscilam" entre os candidatos democrata e republicano. De tempos em tempos surgem candidatos "independentes" — como o magnata texano Ross Perot em 1992 e o ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg, em 2020 —, mas para isso é preciso ter cacife para bancar a própria campanha.
A possibilidade de um candidato se eleger presidente com menos votos populares do que o adversário soa estranha para nós, que estamos acostumados com o sistema majoritário, mas foi o que ocorreu em 2016 — para citar o caso mais recente —, quando Donald Trump derrotou Hillary Clinton. Isso se deve ao fato de o presidente não ser eleito pelo voto direto da população, mas por um Colégio Eleitoral formado por delegados eleitos pelos cidadãos de cada estado.
Os votos são contabilizados nos respectivos estados, e o vencedor leva tudo ("the winner takes all", como a canção imortalizada pelo ABBA). Ou seja, o candidato que consegue mais votos em um estado fica com todos os delegados daquele estado. A Constituição não os proíbe de votar de forma independente, mas a maioria dos delegados respeita a vontade popular e as diretrizes de seus partidos. Para ser eleito presidente, o candidato precisa de pelo menos 270 votos dos 538 possíveis (total que corresponde à quantidade de delegados estabelecida em 1964). Caso esse quociente não seja alcançado, a Câmara dos Representantes elege o presidente, e o Senado, o vice-presidente (que não precisam pertencer ao mesmo partido).
Voltando às eleições municipais tupiniquins, os vereadores — assim como os deputados estaduais, federais e distritais — são eleitos com base num "sistema proporcional", que, guardadas as devidas diferenças, é tão complicado quanto o adotado nos EUA. Esse sistema leva em conta tanto os quocientes eleitoral e partidário como as sobras e médias dos votos. Assim, os candidatos mais votados nem sempre conquistam uma vaga, pois isso depende do desempenho das legendas, coligações ou federações partidárias, conforme o caso.
A distribuição das cadeiras nas Casas Legislativas começa com a verificação do desempenho de cada legenda — o assim chamado quociente eleitoral, que é obtido pela divisão do número total de votos válidos pelo número de cadeiras em disputa (somente os partidos que alcançam esse índice mínimo têm direito a vagas nas Câmaras Municipais). Já o quociente partidário resulta da divisão do total de votos válidos obtidos pela legenda pelo quociente eleitoral, e determina o número de cadeiras que tocam a cada partido. Elas são ocupadas pelos candidatos mais votados, mas um candidato bem votado pode não conseguir um mandato se o partido a que ele pertence não obtiver votos suficientes para conquistar espaço no Legislativo local.
A título de curiosidade, as eleições presidenciais americanas passaram a ser realizadas sempre numa terça-feira para uniformizar o calendário eleitoral. Antes disso, cada estado tinha o seu próprio calendário, o que gerava confusão na hora de compor as vagas do Executivo e do Legislativo. Mas a terça-feira foi escolhida também por razões culturais: às segundas, por exemplo, muitas pessoas teriam que viajar no domingo sabático; às quartas — dia de feira — parte dos comerciantes não poderia comparecer.
Enfim, o jeito é esperar para ver que bicho dá.