A tal “democracia consolidada” só existe na imaginação fértil do ministro Luís Roberto Barroso. No mundo real, o Brasil é um país agonizante, uma gigantesca nau que deriva sem rumo, imersa em trevas, tendo no timão não um capitão, mas um sabotador.
A economia, que já ia trôpega, foi nocauteada pela pandemia
sanitária. Dos projetos mirabolantes do Posto Ipiranga de festim, nenhum foi
adiante. A aprovação da PEC da Previdência se deu graças ao empenho do
presidente da Câmara; a depender do timoneiro desta nau de insensatos, ela teria
o mesmo destino das promessas de companha do capitão conversinha, como o combate
sem trégua à corrupção, o repúdio à “velha política” do “toma-lá-dá-cá”, o fim da
reeleição, as privatizações, enfim...
Sobre as privatizações de estatais e vendas de imóveis da União: segundo o superministro bom de goela mas ruim de jogo, elas recheariam os cofres públicos com um trilhão de reais, mas jamais saíram do papel. Criticado e acusado de inoperância, o chefe da Economia culpa o Congresso — e não sem razão. Mas, para ser justo, ele deveria mencionar, ao menos de passagem, a oposição de alguns setores do governo e a fragilíssima convicção liberal do capitão-sem-rumo (sempre ele!).
No início da desditosa gestão Bolsonaro, o empresário Salim Mattar, então secretário especial de Desestatização, mapeou
as estatais que podiam ser vendidas. Em agosto, ao perceber que desse
mato não sairia coelho, Mattar achou por bem pegar seu boné e reassumir a presidência
da Localiza Hertz. Já ex-secretário, ele escreveu no Brazil
Journal que “(...) a lógica do governo não é a lógica da iniciativa
privada. A tese liberal de reduzir o tamanho do estado para desonerar o cidadão
é aplaudida mas pouco apoiada. O arcabouço legal é complexo e moroso. Tudo
torna o processo burocrático, lento. O establishment composto diretamente pelos
empregados públicos, sindicatos, fornecedores, comunidades, políticos locais,
partidos de esquerda e lideranças políticas têm sido uma barreira natural para
a privatização.”
Convém salientar que somente as estatais precisam passar
pelo crivo do Legislativo. As subsidiárias — são 88 no total — e as participações
do governo em outras empresas podem ser vendidas sem a necessidade de autorização
parlamentar. O problema é que o próprio governo se beneficia delas para dar
cargos a aliados e comprar benesses das marafonas do Congresso. Ou será que
o Centrão está apoiando o mandatário de turno por seus belos olhos azuis?
Observação: O Brasil tem 46 estatais controladas
diretamente pela União. Destas, 19 operam no vermelho e servem apenas como
cabides de emprego. Nos últimos 5 anos, as empresas acumularam um prejuízo de
R$ 22 bi. Só com salários dos funcionários, torram mais e R$ 100 bi por ano. Quando
dão prejuízo, empresas privadas acabam e morrem, mas as estatais deficitárias ganham
mais dinheiro: entre 2015 e 2019, o Tesouro injetou nada menos que R$ 71 bi
nesse saco sem fundo. Entre as que precisam ser privatizadas ou extintas, há
empresas como a Ceitec, que fabrica chips para bois, e a EPL,
criada para projetar um trem-bala, e os Correios, que acumulam uma
dívida de R$ 1,7 bi.
Passando da desditosa Economia para a desventurada Saúde, a pasta se encontra atualmente — e pela segunda vez — sob nova direção. Em
meados de abril, em meio à crise do Covid-19 — que até então havia
produzido 1.924 vítimas fatais — o
médico ortopedista foi penabundado pela fratura exposta que o nomeou. O
crescimento exponencial da popularidade do subordinado constrangeu o subordinante,
e o caldo entronou quando o pajé optou por seguir a ciência em vez de dizer
amém ao isolamento vertical, ao uso da hidroxicloroquina e a outras abilolices do
morubixaba.
Para ser ministro sob a batuta do maestro sem ritmo, é preciso dar o rabo e se desculpar por estar de costas. Por não aceitar essa cláusula contratual, o oncologista que o câncer escalou para substituir o ministro demitido demitiu-se às vésperas de completar um mês no cargo. Em pronunciamento à imprensa, o demissionário ensinou “que a vida é feita de escolhas, e que ele escolheu sair“.
Com a saída de Teich, um general de divisão que havia sido indicado
por outros ministros generais — e já vinha se dedicando à tarefa de transformar
a pasta da Saúde num insano “cabide de farda” para apaniguados
do general da Banda — tornou-se ministro interino. Meses depois, em
reconhecimento pelo conjunto de sua obra, o grande chefe o efetivou
no cargo, e hoje, em meio ao repique da pandemia (ou segunda onda, como
preferem alguns), o país contabiliza 6.628.065 infectados, 5.801.067
recuperados e 177.388 mortos.
Mesmo sendo expert em logística e fiel cumpridor das ordens
do mandachuva de turno, o triestrelado tutelado não avaliou até que ponto vai
irracionalidade de seu tutor. Assim, incorreu em crime de “lesa-majestade” ao
anunciar a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac (produzida pelo laboratório
chinês Sinovac Biotech e testada no Brasil pelo Instituto Butantan). A medida foi elogiada pelos governadores, mas que despertou a ira do chefe do
terreiro:
"A vacina chinesa de João Doria, qualquer vacina antes de ser disponibilizada à população, deve ser comprovada cientificamente pelo Ministério da Saúde e certificada pela Anvisa. O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. Minha decisão é a de não adquirir a referida vacina”, disparou o mandatário.
Na mesma tarde, em visita ao Centro Tecnológico da
Marinha, em Iperó (SP), o capitão trevoso voltou a se pronunciar sobre a compra do imunizante
chinês: “Já mandei cancelar, o presidente sou eu, não abro mão da minha
autoridade.” Já o governador João Doria — que o presidente vê como “o inimigo a ser neutralizado o quanto antes” para não ter enfrentar em 2022 — disse (acertadamente, a meu ver e à luz do bom senso) que “não
se deve avaliar a origem da vacina, e sim a sua eficácia”.
Segundo Lauro Jardim, colunista de O Globo, o mandatário afirmou a auxiliares que o ministro-general estava “querendo
aparecer demais, está gostando dos holofotes, como o Mandetta”. Diante
de tanta sutileza, o ministério da Saúde mudou
a própria publicação em seu site oficial e apagou do Twitter
postagens em que confirmava
a intenção de adquirir a CoronaVac. O ministro, que havia
testado positivo para o coronavírus, só deu o ar da graça dias depois. Numa live postada pelo próprio presidente,
como que para provar que continuava sendo o vassalo obediente de sempre, desmanchou-se o fardado em subserviência ao suserano: “um manda e o outro obedece”.
No final de novembro, depois que o Estadão denunciou o descalabro dos testes RT-PCR, a cabeça de Pazuzu, digo, Pazuello, quase rolou. Faltou o “quase”, que é primo do “se”. E não foi por falta de candidatos a seu cargo — há tempos que partidos do Centrão estão de olho no orçamento bilionário da pasta da Saúde.
Aluno aplicado, o ministro
pôs em prática os ensinamentos aprendidos com o capitão-conversinha e culpou
governadores e prefeitos pela própria parvoíce. Na tarde desta terça (8), questionado
pelo governador paulista sobre a compra da CoronaVac e as medidas
provisórias bilionárias para compra de imunizantes da Oxford-AstraZeneca
e do consórcio Covax — que, a exemplo da CoronaVac, também não
foram aprovadas pela Anvisa —, reagiu dizendo que “a
vacina do Butantan não é do estado de São Paulo”, mas afirmou que “havendo
demanda e preço, todas as condições serão alvo de nossa compra”.
Pazuello aventou a possibilidade de adiantar o cronograma
nacional para o fim de fevereiro, quando a vacina da Oxford-AstraZeneca
estará devidamente registrada pela Anvisa. Disse que a
aprovação deve demorar 60 dias (como a de qualquer outro imunizante, segundo ele), sem
esclarecer se esse prazo se refere ao registro definitivo ou à análise para uso
emergencial, que seria um procedimento mais rápido. Mas ressaltou que a vacina
da Oxford está na fase 3 (a última antes da aprovação para uso da
população), que os testes estão sendo refeitos devido a um erro de dosagem na
análise preliminar e que o processo deve ser finalizado até o fim deste mês.
Sobre esse furdunço insano, Carlos Graieb, jornalista e ex-Secretário de Comunicação do governo do estado de São Paulo, publicou um artigo na revista Época dizendo, entre outras coisas, que “Eduardo Pazuello entrou definitivamente para o time dos antiministros do antipresidente Bolsonaro. Vai compor com Damares Alves, Ricardo Salles, Ernesto Araújo e outros que devo estar esquecendo.”
Antiministros, ensina Graieb, destroem em vez de
construir. Põem a ideologia acima da gestão. São abjetamente submissos aos
caprichos de Bolsonaro e repetem sem vergonha as ideias que nascem do
fígado do presidente. Fazem deste governo um dos piores que o mundo já viu (até aqui, nada muito diferente do que eu venho dizendo desde sempre sobre o desgoverno em curso).
Questionado pelos parlamentares sobre os quase 7 milhões de
testes de Covid-19 que estão prestes a perder a validade nos armazéns
federais, Pazuello fez sua “defesa” em duas linhas: Primeiro, disse que entregou todos os testes que Estados e municípios pediram, sem perceber que, ao fazê-lo, admitiu, mesmo que tacitamente, que os testes que não foram pedidos
ficaram guardados, esperando a perda de validade, e que sua pasta
abdicou de cumprir o papel que lhe cabia na pandemia: o de produzir informações
que pudessem orientar uma política nacional de prevenção da doença e redução
dos seus danos.
É a velha história: desde que o STF impediu o presidente de fazer o que bem entendesse na crise, ele optou por não fazer nada, sob o falso argumento de que toda a responsabilidade cabia a governadores e prefeitos. Pazuello, sentindo-se confortável como fantoche do menino mimado Bolsonaro, quando é confrontado com as evidências de que o número de casos disparou e muitas localidades já estão com o sistema hospitalar novamente à beira do colapso, limita-se a dizer candidamente que “essas coisas acontecem, sobe, depois desce.” Pois é.
A segunda linha de defesa é que, no fim das contas, os testes não servem para muita coisa. Segundo o antiministro, só a análise clínica pode fechar um diagnóstico. Mas há aí uma certa confusão: diagnóstico e tratamento de indivíduos com infecção epidemiológica dependem, em boa medida, de testagem. Não é por outra razão que países com gente séria combatendo a pandemia testam e testam e testam. Não se sabe de onde veio a “teoria Pazuello”, mas seu destino é a lata do lixo.
Para arrematar — e como seu chefe prefere a morte de cidadãos ao distanciamento social —, o ministro tirou do bolso da farda outra teoria maluca sobre ondas da Covid: só a primeira teria a ver com o vírus, as outras diriam respeito a violência doméstica, doenças psicológicas e outras enfermidades.
Mais uma vez, é a velha história: ninguém precisa de um
ministro (nem de um presidente) que, diante dos problemas, diga “pois é, a
vida é cruel”. Governantes são eleitos para agir e, no mínimo, reduzir
danos. E a fala do general sobre vacinação foi preocupante. Segundo ele, a
prioridade do governo é oferecer aos cidadãos um imunizante de eficácia
comprovada — deveria ser o óbvio, mas com o governo Bolsonaro nunca se
sabe. Também segundo ele, os fabricantes de vacinas vão ter dificuldades
para atender a demanda brasileira. Tudo somado e subtraído, o conversê soou como um alerta: que ninguém se
anime e, por favor, não venham nos cobrar.
São várias as lições da audiência pública na qual o general se dignou a dar o ar de sua graça, mas nenhuma delas boa. Como ministro da Saúde, Pazuello é um antiministro. Como especialista em logística, é menos eficiente que um chefe de almoxarifado.
Resumo da ópera: Não haverá distribuição adequada de vacina tão cedo. E também não há planos
para os repiques da doença em 2021. A instrução do governo aos brasileiros é:
habituem-se com a morte.
Embora a comparação seja injusta, o Reino Unido, que
começou a vacinar a população nesta terça-feira com o imunizante da Pfizer,
demorou menos de um mês para aprovar o uso da vacina em caráter emergencial
após ter seus estudos protocolados na agência sanitária local. Fica no ar a questão: se Bolsonaro não
tivesse transformado a pesquisa e a produção de vacinas contra a Covid-19 numa
mesquinha disputa eleitoreira, teria essa merdeira descido a tal nível de
indecência?