quinta-feira, 27 de maio de 2021

A CPI DO GENOCÍDIO E A PUNIÇÃO DE PAZUELLO

 

Em meio a discussões acaloradas, os membros da CPI da Covid aprovaram a convocação de nove governadores de Estados em que houve operações da PF para apurar possíveis irregularidades no uso de recursos federais no enfrentamento da pandemia. Senadores bolsonaristas queriam convocar o governador João Doria, desafeto do capitão-negação, mas até o final da tarde de ontem o requerimento (de autoria do senador Marcos Rogério) não havia sido aprovado.

Serão ouvidos Eduardo Pazuello e Marcelo Queiroga (ex-ministro da Saúde e atual titular da pasta, respectivamente), Filipe Martins (assessor de assuntos internacionais da Presidência), Arthur Weintraub (ex-assessor especial da Presidência), Luana Araújo (ex-secretária de enfrentamento à Covid), Marquinhos Show (ex-diretor de comunicações) e Aírton Cascavel (ex-assessor especial do ministério da Saúde) deverão ser ouvidos pelo colegiado, ainda sem data marcada para as respectivas oitivas. O empresário Carlos Wizard, apontado como “consultor voluntário” de Pazuello, e Paulo Baraúna, diretor da empresa White Martins, também deverão ser ouvidos.

Minutos após o início dos trabalhos, o presidente da CPI se reuniu a portas fechadas com os demais membros para costurar um acordo sobre os pedidos de informação, convites e convocações que seriam votados. Alegando “participação direta ou indireta nos graves fatos questionados pela CPI”, o vice-presidente da Comissão, Randolfe Rodrigues, pediu a convocação de Jair Bolsonaro. “Os critérios e vedações são os mesmos que se encaixam em relação aos governadores; então eu queria pedir para a inclusão deste requerimento com os demais que vão ser apreciados”, argumentou o senador.

Embora a Constituição não proíba expressamente, a convocação do chefe do Executivo Federal por uma CPI pode caracterizar interferência entre Poderes. O requerimento de Randolfe segue pendente de apreciação, já que um acordo firmado em reunião anterior estabeleceu que fossem votados apenas pedidos apresentados com antecedência de pelo menos 48 horas — ou que fossem objeto de consenso entre os parlamentares.

Na sessão de hoje, deverá ser ouvido o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas — em seu primeiro dia de depoimento à CPI, o general Pazuello negou ter recebido ordens de Bolsonaro para não adquirir a CoronaVac, embora tenha sido desautorizado publicamente pelo capitão, que determinou o cancelamento da compra de 46 milhões de doses da “vachina do Doria”. Foi justamente esse “incidente” que levou o ex-ministro a dizer que a coisa era “simples assim: um manda e o outro obedece. Questionado sobre essa frase pelos senadores, Pazuello disse que foi “coisa de Internet” e voltou negar que o presidente lhe ordenou desfazer qualquer contrato.

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Quando um general da ativa participa de um comício, ignorando o Estatuto Militar e o Regulamento Disciplinar do Exército, fica evidente que o Estado tem um problema. Esse problema tem nome e sobrenome. Muitos o chamam de Eduardo Pazuello. Se estivessem certos, a solução seria simples. Bastaria o comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira, divulgar uma nota oficial para distanciar os quarteis da política e informar que a transgressão não ficaria sem uma resposta adequada.

Após ouvir os membros do Alto Comando do Exército, o comandante abriu procedimento disciplinar contra Pazuello. Pretendia divulgar uma manifestação escrita sobre a participação do general no comício do último domingo. Chegou a se entender com o ministro da Defesa, o também general Braga Netto. De repente, deu meia-volta: a estrela do comício que transformou Pazuello num transgressor vetou a divulgação da nota, impondo o silêncio ao Exército. Ficou no ar uma dúvida sobre a autonomia do Exército para impor uma punição adequada a Pazuello — que vai de mera advertência à suspensão, da prisão por até 30 dias à passagem compulsória para a reserva.

O vice-presidente Hamilton Mourão entendeu rapidamente a natureza do problema. Na segunda-feira, declarou que Pazuello sabia que cometera um “erro” e tinha “colocado a cabeça no cutelo”. Mourão sabe como essas coisas funcionam. Em 2014, quando comandava a prestigiosa tropa do Sul, meteu-se numa polêmica política. Perdeu o comando, mas resignou-se: “Andei extrapolando o tamanho da minha cadeira”, disse ele na época. “E a autoridade do comandante não pode deixar de ser exercida.”

Bolsonaro também não desconhece esse tipo de problema. O hoje (ainda) presidente da República cursou a AMAN e serviu nos grupos de artilharia de campanha e paraquedismo. De cadete a capitão, passou14 dos seus 66 anos de vida no quartel. Mas jamais respeitou os valores militares que vive enaltecendo da boca para fora.

Em 1986, aos 31 anos de idade, o então oficial da ativa publicou um artigo na revista VEJA em que reclamava do soldo. A matéria lhe rendeu 15 dias de prisão disciplinar. No ano seguinte, deixou clara sua vocação para subversivo ao planejar explodir bombas de baixa potência em quartéis e academias (também como forma de protesto contra os baixos salários dos militares). Outro artigo publicado por Veja revelou o plano do insurreto, que foi excluído do quadro da Escola de Oficiais, mas acabou absolvido das acusações pelo Superior Tribunal Militar. Mesmo assim, sua carreira no Exército terminou ali.

No mesmo ano em que deu baixa (1988), o capitão reformado se elegeu vereador. Dois anos depois, foi um dos deputados federais mais votados no Rio de Janeiro. Ao longo de sete mandatos como deputado do baixo clero, aprovou dois míseros projetos, mas colecionou dezenas de processos (a maioria deles movidos por parlamentares de esquerda). Na presidência, inaugurou um governo civil em que ninguém sabe o nome do ministro da Educação. Mas todos conhecem os nomes dos generais. Há o Mourão, o Heleno, o Braga Netto, o Ramos...

Bolsonaro tornou a deixar patente seu desprezo pelos valores militares no último domingo, quando levou para o alto de um carro de som um general da ativa, em meio de uma manifestação política. Pazuello podia ter se recusado a participar da passeata em vez de pisotear suas insígnias. Mas Bolsonaro, como militar e como presidente, foi coautor desse gesto de desprezo pelas Forças Armadas. 

O processo militar aberto para apurar a conduta de Pazuello não levará menos de 30 dias, durante os quais ele terá oportunidade de se defender. Nem imagino que argumentos usará para explicar o inexplicável, mas o que mais interessa saber se sua eventual aposentadoria compulsória seria uma punição ou uma oportunidade. Quem assistiu a seus depoimentos na CPI do Genocídio — foram duas sessões repletas de mentiras para proteger o presidente — não tem por que estranhar aparição do general no trio elétrico do capitão, onde foi apresentado como “o gordo do bem”.

Ao que tudo indica, ocorreu uma troca de lealdades — da família militar para a família do bolsonarismo. E há indícios de que Pazuello foi picado pela mosca azul: seu nome vem sendo cotado para uma candidatura ao Parlamento (o ex-ministro nega, naturalmente, mas nem Velhinha de Taubaté (*) acreditaria no que ele diz).  Se passar mesmo para a reserva, talvez ele pense carinhosamente nessa possibilidade. Afinal, o exemplo mais bem sucedido de migração da caserna para a política está bem a seu lado.

Talvez  a reserva não seja um castigo assim tão grande para o general, que já se comporta se comporta como político em ano pré-eleitoral. Militar de pijama em cargo civil pode ser visto como solução. General da ativa na política produz anarquia. E o país precisa de outras coisas — vacinas, empregos e serenidade, por exemplo.

(*) Para quem não sabe ou não se lembra, a Velhinha de Taubaté é uma personagem caricata criada por Luis Fernando Veríssimo durante a gestão do general João Batista Figueiredo (1979-1985), o último presidente militar da ditadura. Famosa por ser a última pessoa no Brasil que acreditava no governo, ela “faleceu” em novembro de 2005, aos 90 anos, decepcionada o cenário político tupiniquim, em especial com o seu ídolo, Antonio Palocci.

Com Josias de Souza