quinta-feira, 6 de maio de 2021

CADÊ O GENERAL PAZUELLO?


Tão logo passou a ajudante de ordens do ex-capitão que elegemos para evitar a volta do lulopetismo corrupto ao Palácio do Planalto, o general da ativa Eduardo Pazuello, décimo ministro militar no governo Bolsonaro, nomeou uma tropa de 17 fardados para cargos civis na sua assessoria, inclusive na Anvisa (que já era comandada por um contra-almirante que participou com o presidente de atos antidemocráticos).

Depois de transformar a Saúde em cabide de emprego para os “amigos do rei”, o diligente taifeiro estrelado se apressou a cumprir a ordem de alterar o protocolo para o uso da cloroquina, cuja desobediência custou o emprego de seus predecessores (Mandetta, o Insurreto, e Teich, o Breve).

Em outubro de 2020, o ministro-logístico de festim anunciou que o governo compraria 46 milhões de doses da CoronaVac, mas foi prontamente desautorizado pelo presidente: “Não vamos comprar", disse Bolsonaro, referindo-se ao imunizante que ele e seus acólitos chamavam desdenhosamente de “vacina chinesa do João Doria”. Após contrair a Covid e ficar de molho por duas semanas, o general explicou didaticamente como as coisas funcionavam no ministério da Saúde: “É simples assim: um manda e o outro obedece”.

De volta ao batente, eufórico por não ter sido demitido em razão do incidente envolvendo a compra da Coronavac, Pazuello chegou a comemorar os resultados de sua macabra gestão: "Quantas coisas a gente fez desde que chegou aqui. Graças a essa gestão, a classe média aprendeu que tem de haver o diagnóstico precoce e que não é necessário intubar o paciente. Tanta gente morreu por causa de recomendações erradas! Parece que está passando um filme na minha cabeça".

Ao longo de dez meses, o especialista em logística com competência de ameba conseguiu esquecer quase 7 milhões de testes RT-PCR que estavam prestes a vencer e não antecipou a compra de seringas e agulhas para a vacinação da população.

Observação: Pazuello demorou três meses para responder à Organização Panamericana da Saúde se desejava ou não efetuar compra de 40 milhões de seringas. O primeiro contato da pasta com a organização se deu em 10 de agosto, quando o ministério questionou a Opas sobre o preço “inflacionado” dos insumos. Somente em 10 de dezembro, após um novo orçamento apresentado três dias antes, a pasta decidiu fechar contrato com a Opas, mas optou pelo frete por navio, e não por avião, contrariando parecer da própria pasta que recomendava o frete aéreo. 

Questionado pela imprensa sobre a demora no início da campanha de imunização, o ministro respondeu com precisão suíça e pontualidade britânica: “vai começar no dia D e na hora H”. E emendou: “Nós somos os maiores fabricantes de vacinas da América Latina. Para que essa ansiedade e essa angústia?

Em janeiro, enquanto pessoas morriam em Manaus por falta de oxigênio hospitalar, Pazuello distribuía “kits-Covid” à base de cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectinafármacos não só ineficazes no tratamento da Covid como capazes de causar sérios efeitos colaterais. O ministro chegou mesmo a postar em suas redes sociais: “Quanto mais cedo começar o tratamento, maiores as chances de recuperação. Então, fique atento! Ao apresentar sintomas da Covid-19, #NãoEspere, procure uma Unidade de Saúde e solicite o tratamento precoce”.

Observação: Twitter classificou a postagem de Pazuello de “informação enganosa e potencialmente prejudicial à saúde das pessoas”.

O governo federal admitiu que sabia do “iminente colapso do sistema de saúde” do Amazonas dez dias antes de a crise estourar. A informação faz parte de um ofício encaminhado pela Advocacia-Geral da União ao STF. No documento, a AGU diz que o ministério da Saúde fez reuniões entre os dias 3 e 4 de janeiro com autoridades locais, quando detectou que o sistema de saúde do Amazonas estava à beira do colapso. No dia 14, começou a faltar oxigênio hospitalar no estado, afetando pacientes internados em UTIs. Só então foi anunciada a transferência de pacientes para outros estados.

Observação: Como se não bastasse, Pazuello enviou ao Amapá 78 mil doses da vacina Oxford/AstraZeneca destinadas ao Amazonas, que, no auge da crise em seu sistema de saúde, recebeu apenas as 2 mil unidades que seriam remetidas ao estado vizinho

Ainda em janeiro, o governo anunciou que enviaria um avião à Índia para buscar 2 milhões de doses do imunizante da Oxford/AstraZeneca. O ministério da Saúde divulgou o plano à imprensa, e um Airbus A330-900neo da Azul foi alugado e adesivado com a marca “Brasil imunizado”. Depois que a viagem foi adiada mais de uma vez (a Índia não autorizou a exportação, sob a justificativa de que coincidiria com o início da vacinação local), a aeronave foi deslocada para levar cilindros de oxigênio a Manaus.

Observação: Diante desse fiasco, o ministério da Saúde determinou o confisco da CoronaVac no paiol do inimigo. Na sexta-feira 15, o ministro mandou um ofício ao Butantan exigindo a entrega imediata de 6 milhões de doses da “vachina do Dória”. O instituto respondeu que só disponibilizaria o estoque depois que a pasta esclarecesse quanto do contingente já ficaria em São Paulo, e o governador tucano ameaçou recorrer ao STF

A CPI da Covid havia agendado para ontem a oitiva de Pazuello, que continua general da ativa — após transferir o comando da Saúde ao cardiologista Marcelo Queiroga, o general foi realocado como adido à Secretaria-Geral do Exército. Suas novas funções são preparar as reuniões do Alto Comando da instituição, conduzir processos de concessões de medalhas, organizar e divulgar boletins, além de assessorar o comandante a normatizar o uso de uniformes.

Observação: Segundo o general Hamilton Mourão, o ex-ministro deve ganhar novo cargo a partir de julho, quando haverá promoção de oficiais do Exército. Sobre o termo “adido”, o vice-presidente explicou: “O camarada quando ele não tem função específica ele fica adido. A Secretaria-Geral é um órgão subordinado diretamente ao comandante, então, ele fica adido à Secretaria para receber missões eventuais do comandante. Agora no mês de julho, tem promoções no Exército e movimentação de general. Aí, provavelmente, o Pazuello será movimentado para algum lugar”.

A transferência para o DF não impediu Pazuello de desfilar sem máscara em um shopping certe de Manaus. Ao ser questionado, o general ironizou: Pois é, tem que comprar. Onde compra isso?. E seguiu andando e rindo. A exibição de displicência foi vista como passível de reprimenda pública por parte do comando da Exército, mas nada aconteceu.

Pazuello envergonhou a instituição enquanto permaneceu no cargo e continuará a envergonhar fora dele. O ex-ministro Mandetta, que passou quase 7 horas respondendo às perguntas dos senadores na última terça-feira, criticou a gestão do general: “Foi um erro que a gente pagou [um militar na Saúde], foi duro, duro. Agora parece que temos pelo menos alguém que tem o linguajar, [mas] não tem muita experiência.

A oitiva de Pazuello na CPI foi reagendada para o próximo dia 19. O ex-ministro alegou que esteve em contato direto com duas pessoas que testaram positivo para a Covid e foi orientado a cumprir quarentena. Em outras palavras: dez dias depois do episódio lamentável no shopping de Manaus, Pazuello foi subitamente acometido por um surto de responsabilidade sanitária. Em tempos de assepsia, é como se estabelecesse com a Covid uma relação do tipo uma mão suja a outra. À frente da Saúde, ele prestou inestimáveis favores ao vírus, contribuindo com sua incompetência para que a infecção se propagasse. Como ex-ministro, utiliza a propagação do mesmo vírus como escudo para retardar as explicações sobre a sua macabra gestão.

Ironicamente, o risco de infecção não impediu que o general fosse submetido a intensas sessões de treinamento para o depoimento. Na terça-feira, enquanto Mandetta depunha no Senado, Pazuello passou 6 horas sendo treinado para não entregar a rapadura. Segundo O Globo, ele estava “muito nervoso” — seu temperamento explosivo é uma das principais preocupações do Planalto.

Por mais que se esforce, Pazuello não conseguirá afastar a maledicência que associa sua ausência ao medo de que sua aparição se transforme num desses espetáculos de teatro extremamente badalados que fracassam porque o público não foi devidamente ensaiado para a encenação. O Planalto receia que o depoente seja convertido pela CPI numa espécie de bala perdida no rumo de Bolsonaro.

A boa notícia para o governo é que a protelação do depoimento do general que comandou a pasta da Saúde guiando-se pelo lema segundo o qual “um manda e o outro obedece” não aumentou a taxa de suspeição que ronda o ex-capitão. A suspeita de que o desastre produzido por Pazuello é de responsabilidade do presidente continua nos mesmos 100%.

A CPI pode não derrubar Bolsonaro, mas terá efeitos deletérios sobre sua tão sonhada reeleição. A oposição e os muitos desafetos do governo estão eufóricos, mas avizinha-se um cenário perigoso, qual seja o de um presidente sem juízo e sem projeto, mas com uma pandemia, uma ruína econômica e quase dois anos de mandato pela frente.

Josias de Souza pondera que a tragédia sanitária é apenas a porção mais letal do fiasco em que se converteu o governo Bolsonaro, e o ministério da Saúde não é único setor submetido à pane gerencial. O MEC sofre retrocessos que levarão anos para ser revertidos e o setor ambiental encontra-se devastado. Na área econômica, há um ex-superministro que, sem poder elevar a própria estatura, rebaixa o pé direito do seu gabinete e ajusta suas pretensões reformistas às limitações de um presidente que se revelou bem menor do que a crise que engolfa o seu governo.

Nos próximos meses, seguindo o rastro de provas que Bolsonaro produziu contra si mesmo durante toda a pandemia, a CPI vai estragar o papel que o capitão mais gosta de desempenhar: o de colocar a culpa nos outros. Ao esmiuçar os erros que o presidente cometeu como se cultivasse o desejo secreto de ser apanhado, a CPI encurtará sua margem de manobra.

Para um personagem que nunca teve apreço pelas instituições democráticas, falta de espaço para manobrar é um convite para extravagâncias. Bolsonaro voltou a falar em “meu Exército” e “minhas Forças Armadas”. Sobrevoou novamente em helicóptero da FAB uma aglomeração de devotos, alguns deles partidários de uma intervenção militar. O príncipe Zero Três aplaudiu a ocupação que o autocrata de El Salvador promove na Suprema Corte local.

Ao apresentar Bolsonaro a si mesmo, evitando por meio de depoimentos e documentos que o presidente terceirize os seus erros, a CPI reforçará a falência de um projeto que se baseava na teatralização do novo. O velho deputado encrenqueiro do baixo clero que se apresentou em 2018 como uma fulgurante novidade chegará a 2022 como um estelionato político, que se vendeu ao eleitorado como um político antissistema, anticorrupção e pró-liberalismo econômico, mas acabou acorrentado ao sistêmico centrão, chefiando uma organização familiar com fins lucrativos e dando de ombros para a agenda de reformas liberais.

Bolsonaro é governado pelo vírus que, negligenciado por ele, passou a influenciar o rumo do governo enquanto mata. Com os calcanhares expostos na vitrine da CPI, o presidente tende a se dar por satisfeito se conseguir alcançar os dois objetivos que lhe restaram: não cair e continuar passando a impressão de que faz e acontece.

Pior do que um presidente sem rumo, só uma oposição desorientada. Numa evidência dos perigos que assediam o país, a única novidade do noticiário político é que José Sarney, o morubixaba da tribo do MDB, foi procurado por Bolsonaro e por Lula. Quando a esquerda e a direita buscam saídas no epicentro do patrimonialismo arcaico, resta ao brasileiro aguardar pelas próximas manobras e proteger a carteira.

Em tempo: Ouvido ontem na CPI da Covid, o oncologista Nelson Teich, que sucedeu a Mandetta no comando do Ministério da Saúde e se demitiu depois de 29 dias, disse aos senadores que o Brasil poderia ter acesso mais facilitado a vacinas caso tivesse um plano focado nisso. Ele declarou que durante o tempo que esteve à frente da pasta não havia vacina disponível para compra e que ele trouxe o teste da AstraZeneca/Oxford para o Brasil. Segundo Teich, para conseguir mais vacinas seria preciso fechar contratos de risco — que é quando se paga pelas doses sem saber se o imunizante será ou não eficaz. Questionado sobre a teoria aventada para o combate à pandemia pela “imunidade de rebanho” — adquirida quando uma grande quantidade de infectados gera uma proteção comunitária contra o vírus —, o ex-ministro disse que esse conceito é um erro. Volto a esse assunto com mais detalhes numa próxima postagem.