quinta-feira, 17 de junho de 2021

A SUSPEIÇÃO E A DESMORALIZAÇÃO DO SUPREMO

Uma decisão do STF tomada em plenário virtual enterrou de vez qualquer possibilidade de investigação contra um de seus ministros, Dias Toffoli. O ministro Edson Fachin já havia negado liminarmente autorização para a Polícia Federal investigar a denúncia (feita pelo ex-governador fluminense Sérgio Cabral) de que Toffoli teria vendido sentenças quando era presidente do TSE. Semanas atrás, o plenário da corte decidiu anular a delação toda, (que Fachin havia homologado no início de 2020). O pedido de anulação veio da PGR, que não participou do acordo de colaboração premiada.

Sem imagens, sem debates em tempo real, sem transmissão ao vivo pela TV Justiça, o plenário virtual foi responsável pelo record de produtividade do STF no ano passado. De um total de 5.654 processos julgados pelo Plenário, 5.530 foram julgados em sessões virtuais.

Aqui cabe abrir um parêntese: Se da publicidade dependem a credibilidade da sociedade na Justiça, até que ponto o plenário virtual atende à demanda constitucional por transparência no funcionamento do judiciário? Salvo situações em que o sigilo é imprescindível, a opacidade dos trâmites processuais é quase sempre antidemocrática, ao passo que a publicidade, se não é sempre democrática, tampouco é necessariamente antidemocrática. Sob esse aspecto, o plenário virtual não só representa um grande retrocesso como também resulta em perda de qualidade. Explicando melhor: em tese, o julgamento proferido em uma sessão virtual é colegiado; na prática, o resultado se dá pelo somatório dos votos que acompanharam ou não o relator. Em não havendo qualquer garantia acerca da qualidade dos fundamentos da decisão, pode-se ter um resultado unânime, mas sem unanimidade de fundamentos. E aqui fecho o parêntese.

Há tempos que STF vem minando os resultados da Operação-Lava Jato. Em março, pegando um gancho na decisão do ministro Fachin, a plenário formou maioria para anular os processos contra Lula, julgados ou em trâmite, na 13ª Vara Federal em Curitiba

ObservaçãoAntes de anular as condenações de LulaFachin havia rejeitado ao menos 10 vezes retirar da Lava-Jato de Curitiba investigações sem relação com a Petrobras. Em 2017, por exemplo, ele enviou à 13ª Vara Federal de Curitiba  trechos da delação da JBS que mencionavam Lula e Mantega, além de ter votado a favor de manter sob o âmbito da força-tarefa casos que envolveram, por exemplo, Eduardo Cunha, André Esteves, Guido Mantega e Geddel Vieira Lima (e na maioria das vezes foi voto vencido, mas até aí morreu Neves). 

Embora a intenção de Fachin fosse pôr uma pá de cal sobre a alegada suspeição de Moro, o ministro Gilmar Mendes insistiu em levar adiante o julgamento do habeas corpus, e para tal contou com o apoio dos colegas Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Nunes Marques. Pouco se lhes importou o fato de a anulação dos processos ter acarretado a “perda de objeto” do HC e de o próprio Gilmar ter apresentado um pedido de vista que interrompeu o julgamento no final de 2018, depois que a ministra Cármen acompanhou o voto do relator, contrário à tese da defesa do paciente. Tudo somado e subtraído, Moro foi julgado parcial na condução de um processo que não existe, o que, no mínimo, contraria a lógica e o bom senso.

O festival de bizarrices, no entanto, não terminou com a decisão de seguir adiante com o julgamento de um habeas corpus nulo. Gilmar, em um voto longo, se dedicou à destruição da reputação de Moro, no que chamou de “maior escândalo judicial da nossa história”. E apesar de dizer que nem seria necessário usar as supostas mensagens atribuídas ao ex-juiz e aos procuradores da Lava-Jato — porquanto elas jamais foram autenticadas —, ele não só mencionou seu conteúdo como criticou enfaticamente a condução coercitiva de Lula, em 2016, e vários outros atos do ex-juiz dentro dos processos (já então anulados, cumpre reforçar) cuja correção já foi amplamente demonstrada. Como se não bastasse, ainda manifestou sua profunda aversão à Lava-Jato atacando os procuradores da força-tarefa do MPF e o juiz Marcelo Bretas, responsável pelos processos da operação no Rio de Janeiro, a despeito de a conduta deles não estar em julgamento.

Voltando ao caso de Dias Toffoli, o vice-procurador-geral Humberto Jacques de Medeiros alegou que Cabral (o ex-governador fluminense, não o navegador português que supostamente descobriu o Brasil) agiu de má-fé, apresentando apenas fatos já conhecidos e sem provas que embasassem suas alegações — requisito essencial em qualquer acordo de colaboração premiada. A argumentação da PGR foi aceita por sete ministros e rejeitada por quatro.

Não vem ao caso, neste momento, analisar as alegações da PGR ou entrar no debate sobre a competência para se assinar acordos de colaboração, mas sim constatar que o suposto escândalo de venda de sentenças, que agora não terá mais como ser investigado, deu lugar a um escândalo real: o de um magistrado que toma parte de um julgamento no qual ele tem interesse direto. Para a surpresa até mesmo de seus pares, Toffoli não só não se deu por impedido como votou pela anulação da delação de Cabral depois de Fachin, Gilmar Mendes, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux terem enterrado o acordo de colaboração do ex-governador — cujas penas, somadas, passam de 300 anos de prisão.

Pode-se até argumentar que a intervenção de Toffoli, feita depois que a maioria já havia sido formada, seria uma atenuante — pior seria ele proferir voto quando ainda havia risco de a delação restar mantida. Mas isso não tornou a menos escandalosa a atitude do eminente magistrado, que mandou aos brasileiros a seguinte mensagem: os ministros do Supremo realmente consideram estar acima de tudo neste país.

Diz o artigo 252 do Código de Processo Penal que “O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que (...) IV – ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito” — e era indiscutível o interesse de Toffoli no destino da delação de Cabral. “Em hipótese alguma o ministro Toffoli poderia ter votado nesse caso”, afirmou Thaméa Danelon — procuradora da República, professora de Processo Penal e colunista da Gazeta do Povo —, a exemplo de outras personalidades do meio jurídico e político que se manifestaram no mesmo sentido.

O ministro Marco Aurélio Mello criticou o colega em entrevista ao portal UOL: “No lugar dele [Toffoli], teria me declarado impedido ontem (...) Julgar em causa própria é a pior coisa para o juiz. Eu esperava que ele saísse do processo. Por isso é que o Supremo hoje em dia quase não é levado a sério. Isso é péssimo em termos institucionais. Perde a instituição. Não estou atacando o colega. Estou defendendo a instituição que integro.” Ainda que o decano também tenha a sua parcela de decisões que desmoralizaram a corte, atropelaram jurisprudência e desrespeitaram posições do colegiado — como quando mandou soltar, às vésperas do recesso parlamentar, todos os presos com condenação em segunda instância, mas sem o trânsito em julgado do processo —, nesse caso específico ele está coberto de razão.

Os nobres togados já deram mostras suficientes de que a legislação sobre a suspeição só se aplica a eles quando convém. Não é que eles jamais se declarem suspeitos; mas, quando há muito em jogo, suspeições ou impedimentos viram regras fictícias. É assim que Toffoli vota pela anulação de uma delação que poderia levá-lo a ser alvo de investigação, assim como também votou no julgamento do mensalão, embora seu ex-chefe José Dirceu fosse um dos réus. Da mesma forma, Gilmar Mendes já mandou soltar um empresário do setor de transportes carioca, mesmo sendo padrinho de casamento da filha do investigado. Posturas que, em si mesmas, já são muito acintosas, mas que insultam ainda mais a sociedade brasileira quando se lembra que essa mesma corte declarou uma suspeição inexistente, sem base nem nos fatos nem no direito processual, contra o ex-juiz Sergio Moro.

O STF já recebeu 14 ações contra quebras de sigilo determinadas pela CPI do Genocídio, que foram distribuídas livremente. Os pedidos foram distribuídos por sorteio para sete ministros diferentes. Entre a última sexta-feira, 11, quando chegou a primeira ação, e esta terça-feira, 15, já ficou claro que, a depender do ministro e do impetrante, a quebra de sigilo é mantida ou derrubada. Na prática, é o Supremo quem tem a última palavra para fazer valer ou não a determinação do Senado, e os ministros produzem decisões que escancaram uma das faces mais perturbadoras da Justiça: o seu caráter lotérico.

No último sábado, Ricardo Lewandowski negou pedidos de Eduardo Pazuello e Mayra Pinheiro para suspender a quebra de sigilo telefônico e telemático imposta contra eles imposta pela Comissão. No mesmo dia, Alexandre de Moraes negou a suspensão da quebra de sigilo de Ernesto Araújo. Dois dias depois, Luís Roberto Barroso suspendeu as quebras de sigilo de dois ex-servidores do Ministério da Saúde. No mesmo dia, Kássio Nunes Marques suspendeu a quebra de sigilo contra Antônio Élcio Franco Filhode Helio Angotti Netto. Já Rosa Weber manteve a quebra do sigilo de Carlos Wizard.

As decisões mostram que o Supremo tem o condão de podar a investigação da CPI, e decidir quem pode ser atingido ou não pela devassa nos dados telefônicos e telemáticos. Como dito, Lewandowski e Moraes mantiveram intactas as decisões da CPI; Barroso e Nunes Marques decidiram em sentido contrário; Toffoli, Rosa Weber e Cármen Lúcia requisitaram informações adicionais antes de decidir.

A loteria não ficou restrita às quebras de sigilo. Lewandowski autorizou Pazuello a exercer na CPI, se quisesse, o direito de silenciar para não se autoincriminar. Mas obrigou o general a dar as caras na comissão. E ele falou pelos cotovelos. Comprometeu até a alma. Rosa Weber concedeu o mesmo direito ao silêncio para o encrencado governador amazonense Wilson Lima, mas tornou seu comparecimento facultativo. E o gestor saiu de fininho. Nunes Marques concedeu ao ex-governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, a prerrogativa de silenciar na CPI desobrigando-o de comparecer. 

Observação: Witzel não só compareceu como disparou contra o governo Bolsonaro durante mais de quatro horas. Ele afirmou que o governo federal foi omisso no combate à pandemia e deixou os governadores “à mercê da desgraça que viria”, falou sobre suposto o envolvimento de milícias em carreatas pela abertura de comércios, disse ter sido vítima de perseguição política e pediu uma reunião sigilosa com os membros da CPI para revelar fatos “graves” relacionados à atuação do governo federal junto ao Rio de Janeiro e assuntos envolvendo a investigação que resultou em seu impedimento (ainda não há data para a reunião ocorrer). Após bater boca com Flávio "Rachadinha" Bolsonaro e ser inquirido pelo senador bolsonarista Eduardo Girão sobre a compra de respiradores para o RJ, Witzel valeu-se do habeas corpus e deixou o recinto"Não podia deixar de vir. Respondi a todas as perguntas. Agora na medida em que começa a haver ofensas, na forma de senadores que se dirigiam a mim de forma ofensiva, de forma leviana, até mesmo chula, não poderia continuar dessa forma. Estou aqui para ser respeitado e respeitar", disse ele, em entrevista após a sessão. Às provocação do filho do capitão, o ex-governador respondeu: "Pode ficar tranquilo que eu não sou porteiro. Não vai me intimidar, não. Mas, senador Flávio Bolsonaro, vossa excelência é contumaz ao dar declarações atacando o Poder Judiciário, especialmente o juiz Flávio Itabaiana". A fala era uma referência ao porteiro do condomínio em que Jair Bolsonaro tem residência no Rio, que inicialmente afirmou que os assassinos de Marielle Franco teriam ido à casa do presidente, mas que depois mudou a sua versão. Além de chamar o primogênito do presidente de "mal-educado e mimado, Witzel disse que vem recebendo ameaças de morte em série. Acredita que algumas delas partem de milicianos do Rio de Janeiro, apesar de ressaltar que "miliciano não se declara miliciano".

Tanta confusão seria evitada se o Supremo se balizasse pelo próprio regimento, que concentra num único magistrado, chamado tecnicamente de prevento, os processos de conteúdo análogo. Entretanto, por alguma razão que o bom senso desconhece, alega-se que ações sobre CPIs não seguem essa regra. Tem-se a impressão de que aquela senhora cega representada na estátua da Justiça, defronte do prédio do Supremo, ficou velha. Trocou a espada por uma agulha. Já meio tantã, faz um tricô de pontos desconexos com o novelo de suas próprias contradições. Esse trançado confuso produz um fenômeno tão antigo quanto deletério: insegurança jurídica.

Observação: Em nota, o STF informou que: “Mantendo rigorosamente os seus precedentes, tem adotado a regra da livre distribuição (sorteio entre todos os ministros, excluindo o presidente) para ações sobre a CPI, como foi feito com outras comissões no passado, sendo a prevenção medida excepcional para casos relacionados por conexão probatória ou instrumental. O Regimento Interno do STF, convém reiterar, não estipula prevenção por temas gerais (exemplos: CPI, pandemia, Copa). A primeira ação sobre a CPI da Pandemia foi sorteada ao ministro Luís Roberto Barroso, e depois já chegaram diversos pedidos que atualmente estão em sete gabinetes. Eventuais divergências de entendimento nas decisões, quando houver, podem ser dirimidas pelo Plenário da Corte em caso de recurso, para que o Supremo responda a uma só voz. É preciso ressaltar ainda que a Constituição Federal assegura a garantia do sigilo aos cidadãos e, para o direito individual ser afastado, é necessária a análise individual sobre o caso específico”.

Com Josias de SouzaJOTA Gazeta do Povo