segunda-feira, 7 de junho de 2021

CAPITÃO BRANCALEONE — PARTE II

 

Em 1965, o diretor italiano Mario Monicelli mostrou ao mundo o satírico filme O Incrível Exército de Brancaleone, baseado no livro Dom Quixote de La Mancha, do escritor espanhol Miguel de Cervantes. Contextualizado na baixa idade média, o enredo aborda o trinômio “peste, guerra e fome” e revolve as relações feudais, o poder da igreja católica, o enfrentamento com sarracenos, bizantinos e bárbaros.

A exposição da morbidez se alterna entre momentos de maior tensão, crueldade e outros mais maliciosos, nos quais surge uma impressão de desgosto pelo senso de putrefação da vida, pelo desmoronamento das leis sociais, pela dissolução de toda possibilidade de bem-estar e de felicidade humana. Com extrema habilidade, a descrição mistura tanto acontecimentos realísticos quanto imaginários.

O diretor recria uma atmosfera opressora, um espetáculo de desolação, mas também mostra que, diante de um cenário apocalíptico como aquele, a reação de grande parte das pessoas, paradoxalmente, não foi deprimir-se e rezar, pretendendo expiar os próprios pecados. Pelo contrário. Depois de uma primeira fase de desespero e desordem, o que prepondera é o sentimento de honra, especialmente o da cavalaria medieval.

Brancaleone busca herança consistente num feudo, apoiando-se em um punhado de delinquentes frugalmente armados, covardes, que querem escapar do banditismo sem arrostar perigo. A esse agrupamento, ele chama de “meu exército”, e tenta cumprir sua missão. Valendo-se de pantomima, Bolsonaro tenta governar o país. Assim, criou-se uma falsa divisão ideológica, quando na verdade o que se tem é o personalismo presidencial.

Admitindo a divisão clássica — para efeito de argumentação —, a esquerda jogou fora o poder por insistência no erro: a dilapidação da economia nos governos Dilma com a chamada “nova matriz econômica” (coisa de demente que possibilitou uma intervenção forte do governo); a concepção estatizante, entre outras áreas, na exploração de petróleo; a utilização dos bancos públicos para criar artificialmente os “gigantes nacionais”; o aparelhamento das instituições; obras despropositadas, como a criação de universidades federais sem qualquer sintonia com a realidade, a exemplo da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, que atualmente está com seleção aberta para o ingresso de povos indígenas aldeados do Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Equador, Colômbia, Uruguai, Venezuela, Paraguai e Peru; entre tantas outras bizarrices.

Já a direita que ocupa as ruas é mentecapta e irracional: não acredita em aquecimento global; é a favor do contingenciamento de verbas para educação a fim de se diminuir a quantidade dos cursos de “humanas” — sem levar em conta que esses profissionais, por baixíssima valorização , são os que acabam alfabetizando as crianças mais pobres no ensino fundamental—; crê que Hitler era de esquerda; quer um armamento incondicional da população e tantas outras bobagens que acabam por confundir, nessa barafunda, quem é de direita com quem é louco.

O Marxismo-Leninismo criou cultura por atavismo: é detentor do direito de defender “os descamisados”; as bandeiras sociais; os privilégios do funcionalismo público; a proteção das empresas nacionais; as altas alíquotas de impostos para financiar programas de assistência como o “bolsa maconha” e o “bolsa preso”. E ponto. 

A direita, por não gozar dessa ancestralidade, precisa ser culta, estudar, apresentar soluções que melhorem “definitivamente” as condições de vida da população: as reforma da Previdência e Tributária; a demissão de incompetentes estáveis; a criação de partidos políticos fortes com a eliminação de cerca de 30 siglas eivadas de vendilhões; a adoção de sistema distrital misto, sem lista fechada; a extinção de órgãos absolutamente inúteis como o CNMP e CNJ; uma reforma política mais ousada, com o fim do Senado Federal (porque deixou de ser uma casa revisora e todas as suas funções podem ser encampadas pela Câmara dos Deputados); a redução de cerca de metade dos  membros da Câmara Baixa porque, ao contrário do que se pensa, quanto mais pessoas, mais confusão para se resolver as questões substanciais da Nação; e por aí vai.

Em suma, temos nas duas casas mais ou menos 80% de “Zé-Manés”, mas com um grau de esperteza digno de ser esculpido por uma Adriana Varejão. A dicotomia entre conservadorismo e agenda de metas avançada é mera empulhação. É perfeitamente possível que alguém que defenda o aumento de penas e adoção de dificuldades para progressão de latrocidas, estupradores, pistoleiros e grandes traficantes, e se posicione igualmente pela legalização da maconha, desencarceramento de pequenos delinquentes, com a expansão de penas alternativas, e a aplicação do direito sem vingança, como ele é. 

Até agora, Bolsonaro protagonizou polêmicas para satisfazer quem o suporta e antagonizar quem o renega. Tem um traço em comum com Lula, o “ex-corrupto”: o discurso direto e iletrado (tanto que as pesquisas revelam que ambos se encontram no mesmo patamar de votos), e também se equipara a Dilma na capacidade de criar com o lugar comum (basta abrir a boca). Ambos são Ofélias.

Bolsonaro tem um ativo positivo na política: elimina, mata e aniquila para sobreviver. Não cozinha o galo, como muitos dos seus antecessores. É um carcará. Exerce como nenhum outro presidente a prerrogativa do poder original, o do voto. Faz o seu entorno perceber que tem uma parcela do poder, mas que essa parcela de poder é derivada do presidente. Mesmo em relação a outros Poderes, o capitão tenta mostrar que é maior. Ano passado, num almoço com os presidentes Toffoli, Maia e Alcolumbre, levou seus ministros. Como a dizer que só aceita conversação às claras. Jânio e Collor tentaram esse método e se esborracharam.

Bolsonaro se comporta como um vereador de roça. “Seu exército” é constituído de tuiteiros e boquirrotos. Em algum momento, a crise lhe cobrará a fatura. Quanto a confiar no povo, basta lembrar que o povo matou Cristo.

Com Demóstenes Torres (ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado).