Na "Carta ao Leitor" desta semana, VEJA
relembrou que Steve Jobs, fundador da Apple e um dos maiores ícones
do capitalismo mundial, era dono de uma capacidade inata de convencer as
pessoas a realizar tarefas mirabolantes.
Chamada de reality distortion field
(campo de distorção da realidade), essa peculiaridade do gênio da tecnologia
era baseada no carisma e na habilidade de agregar apoio na direção daquilo que
ele queria. Quando acionava esse “escudo”, Jobs passava a acreditar que
o impossível era alcançável, e assim minimizava obstáculos e propagava sua
crença entre os colaboradores. Apesar de alguns reveses, a estratégia deu
certo, transformando a Apple em uma das maiores empresas do mundo e seu
dono em uma lenda.
No Brasil, testemunhamos hoje um exemplo claro de reality
distortion field. Mas, ao contrário do empreendedor americano, a nossa
experiência é absolutamente negativa e pode ser tremendamente prejudicial ao
país — na verdade, já está sendo. No nosso caso, a distorção da realidade é
provocada por Jair Bolsonaro.
No 7 de Setembro, convocadas pelo presidente, dezenas de
milhares de pessoas ocuparam algumas ruas das principais capitais brasileiras
empunhando cartazes que, entre outras loucuras, alertavam contra “a ameaça
do comunismo” ou defendiam a ideia de que “o STF é o pior inimigo do
Brasil”. É chocante para quem acompanha minimamente a cena política e
econômica brasileira ouvir tais disparates. Ninguém fora de hospícios deveria
falar hoje em comunismo por aqui, e o ministro Alexandre de Moraes,
goste-se ou não de suas decisões, não tem nada a ver com os quase 600.000 mortos pela pandemia, o
PIB baixo, a alta da inflação, a gasolina a R$ 7 reais o litro e
o dólar muito acima do que deveria — problemas reais do país.
O Brasil poderia estar surfando na retomada da economia
global e na alta do preço das commodities, mas, bombardeados com insanidades
nas redes sociais — terreno em que Bolsonaro promove seu mundo de
fantasia, brasileiros saíram de casa para protestar, proporcionando as fotos e
a narrativa que o "mito" tanto almeja. Felizmente, o alcance dessa
realidade paralela vem diminuindo com o tempo. Sem capacidade de governar e
entretido em devaneios autoritários, o capitão vê as dificuldades se
acumulando, nada faz para resolvê-las e, como as pesquisas apontam, está
perdendo eleitores (além de aliados importantes).
Seu próximo grande desafio — o da vida real — é o risco de
racionamento de energia elétrica, devastador para o crescimento da economia e
para a vida das pessoas, inclusive para a turma que se vestiu de verde-amarelo
no feriado. A maior parte dos reservatórios nacionais está num nível abaixo do
que estava há vinte anos, quando vivemos um apagão e o governo Fernando
Henrique, infinitamente superior ao atual, acabou derrotado nas urnas.
Ciente desde outubro do ano passado dessa questão, Bolsonaro
continua a se dedicar apenas ao que sabe: promover uma guerra permanente contra
instituições (com breves recuos) e sonhar com um autogolpe. A depender da
reação, ele pode ganhar combustível e assuntos para criar mais ilusões; porém,
se racionalidade imperar, o mandatário de fancaria não tem chance.
Bolsonaro fala em corda esticada enquanto se empenha
em tensionar cada vez mais o hipotético artefato que, tudo indica, acabará
arrebentando do lado dele. Se acredita que a grande quantidade de gente
presente às manifestações do último dia 7 lhe confere e assegura força
política, engana-se por completo. No máximo, inibe a abertura de um processo
de impeachment.
Preocupada com as crescentes adversidades do cotidiano, a
maioria da população não está armada para guerra de nenhum outro tipo que não
seja contra a inflação, o desemprego, a pandemia e o risco
de apagão elétrico. Nos poderes Legislativo, Judiciário e
até mesmo nas internas do Executivo a reação às palavras do mandatário
foi péssima. Não apenas, mas também por causa das agressões reiteradas, ele tem
se tornado uma companhia tóxica. Gente que normalmente pisa com cuidado quando o
assunto envolve a figura do presidente tende a aumentar a firmeza dos passos.
Unido como nunca esteve por obra das agressões do chefe do
Executivo, o Supremo cogita de tomar a iniciativa de enviar à Câmara,
com todo o seu peso institucional e sem passar pela PGR, um pedido de
impeachment se Bolsonaro concretizar as ameaças de não cumprir decisões
judiciais — ele fez essa ameaça de duas formas: ao indicar em declarações
públicas que pode atuar fora das "quatro linhas da Constituição"
e por meio de recados que há algum tempo vem fazendo aos ministros. Daí a
convicção da maioria do STF sobre a impossibilidade de ocorrer um recuo
rumo à moderação (nem vou mencionar a patética "carta
à nação" redigida pelo igualmente patético vampiro do Jaburu). Ao
contrário, a expectativa é de exacerbação crescente.
Com apoio do colegiado, Fux já decidiu que não dará
mais um passo na direção do diálogo. Se qualquer outra autoridade insistir na
proposta de reabrir um canal de conversa, o ministro não rejeitará
liminarmente, mas vai impor duas condições: 1) que cessem as agressões e, 2)
que os termos do armistício sejam respeitados por Bolsonaro. Em caso de
quebra do eventual acordo, a beligerância de um lado teria como resposta a mão
firme do estado de direito.
No entendimento estabelecido nas internas do STF, o
presidente da República precisará produzir prova material de que compreende o
sentido da expressão “estado de direito”. Ela significa que o Judiciário
é o único autorizado pela Constituição a reformar (para não dizer, cassar)
decisões dos outros dois poderes, porque a última palavra é a da lei. Isso num
Estado comandado pelo Direito, onde o império é o da legalidade. Até agora, no
entanto, Bolsonaro não deu sinais de que compreende nem muito menos
indica que pretende se submeter a esse preceito, tal a desfaçatez e a ligeireza
com que fala em descumprir decisões oriundas do STF — que tem estratégia
de reação montada para o caso de riscos institucionais leves, graves e
gravíssimos.
Há quem considere que essa disposição presidencial possa
levar a uma situação de ruptura decorrente de um impasse para o qual não
haveria solução. Não é esse, contudo, o pensamento preponderante das togas. Caso
o Poder Executivo se recuse a atender a um pedido dos governadores de ajuda
federal para execução de operação por Garantia da Lei e da Ordem (GLO)
diante da ocorrência de tumultos prejudiciais à realização das eleições, o
Judiciário e o Legislativo podem solicitar tais ações independentemente da vontade
do Planalto.
A hipótese ainda mais gravosa seria a de o presidente da
República materializar as ameaças de reagir ao cumprimento de decisões da
Corte. Bolsonaro já disse que faria isso. Seria coisa inédita na
República. Desde que a República se entendeu por democrática, nenhum presidente
envolvido em situações periclitantes levou adiante algo parecido, justamente
porque a Constituição dá ao Direito a prerrogativa da palavra final. Seria uma
situação delicada que levaria o presidente da Câmara a um beco sem saída.
Mesmo o Supremo propondo, a decisão final ainda cabe aos
deputados, e a prerrogativa de levar ou não a questão ao plenário continua
sendo do presidente da Casa do Povo, onde hoje se acumulam mais de 130 pedidos.
Só que uma coisa é ignorar solicitações de populares, juristas ou mesmo de
entidades de classe e outra, bem diferente, é ignorar um ofício do STF,
naturalmente lastreado em robusta justificativa jurídica, solicitando a
abertura de um processo de impeachment do presidente da República. Além do
ineditismo do gesto, haveria o peso do signatário sobre a cabeça de Lira.
Enquanto Bolsonaro esbraveja no palanque, nos
bastidores o Supremo se articula em seus canais de comunicação com o Legislativo,
com a Polícia Federal e com os comandos das Forças Armadas na
montagem das estratégias de precaução contra as arruaças de um presidente que
tanto pode ser impedido no exercício do cargo quanto ser interditado como
candidato. Cumpre, ademais, sublinhar: os inquéritos em curso no STF e
no TSE produzirão resultados — seja no todo ou em parte — no ano
eleitoral de 2022.
Como diria Pazuello, é simples assim.
Com Dora Kramer