quinta-feira, 16 de setembro de 2021

COMO DIRIA PAZUELLO, É SIMPLES ASSIM (PARTE III)

 

Na "Carta ao Leitor" desta semana, VEJA relembrou que Steve Jobs, fundador da Apple e um dos maiores ícones do capitalismo mundial, era dono de uma capacidade inata de convencer as pessoas a realizar tarefas mirabolantes.

Chamada de reality distortion field (campo de distorção da realidade), essa peculiaridade do gênio da tecnologia era baseada no carisma e na habilidade de agregar apoio na direção daquilo que ele queria. Quando acionava esse “escudo”, Jobs passava a acreditar que o impossível era alcançável, e assim minimizava obstáculos e propagava sua crença entre os colaboradores. Apesar de alguns reveses, a estratégia deu certo, transformando a Apple em uma das maiores empresas do mundo e seu dono em uma lenda.

No Brasil, testemunhamos hoje um exemplo claro de reality distortion field. Mas, ao contrário do empreendedor americano, a nossa experiência é absolutamente negativa e pode ser tremendamente prejudicial ao país — na verdade, já está sendo. No nosso caso, a distorção da realidade é provocada por Jair Bolsonaro.

No 7 de Setembro, convocadas pelo presidente, dezenas de milhares de pessoas ocuparam algumas ruas das principais capitais brasileiras empunhando cartazes que, entre outras loucuras, alertavam contra “a ameaça do comunismo” ou defendiam a ideia de que “o STF é o pior inimigo do Brasil”. É chocante para quem acompanha minimamente a cena política e econômica brasileira ouvir tais disparates. Ninguém fora de hospícios deveria falar hoje em comunismo por aqui, e o ministro Alexandre de Moraes, goste-se ou não de suas decisões, não tem nada a ver com os quase 600.000 mortos pela pandemia, o PIB baixo, a alta da inflação, a gasolina a R$ 7 reais o litro e o dólar muito acima do que deveria — problemas reais do país.

O Brasil poderia estar surfando na retomada da economia global e na alta do preço das commodities, mas, bombardeados com insanidades nas redes sociais — terreno em que Bolsonaro promove seu mundo de fantasia, brasileiros saíram de casa para protestar, proporcionando as fotos e a narrativa que o "mito" tanto almeja. Felizmente, o alcance dessa realidade paralela vem diminuindo com o tempo. Sem capacidade de governar e entretido em devaneios autoritários, o capitão vê as dificuldades se acumulando, nada faz para resolvê-las e, como as pesquisas apontam, está perdendo eleitores (além de aliados importantes).

Seu próximo grande desafio — o da vida real — é o risco de racionamento de energia elétrica, devastador para o crescimento da economia e para a vida das pessoas, inclusive para a turma que se vestiu de verde-amarelo no feriado. A maior parte dos reservatórios nacionais está num nível abaixo do que estava há vinte anos, quando vivemos um apagão e o governo Fernando Henrique, infinitamente superior ao atual, acabou derrotado nas urnas.

Ciente desde outubro do ano passado dessa questão, Bolsonaro continua a se dedicar apenas ao que sabe: promover uma guerra permanente contra instituições (com breves recuos) e sonhar com um autogolpe. A depender da reação, ele pode ganhar combustível e assuntos para criar mais ilusões; porém, se racionalidade imperar, o mandatário de fancaria não tem chance.

Bolsonaro fala em corda esticada enquanto se empenha em tensionar cada vez mais o hipotético artefato que, tudo indica, acabará arrebentando do lado dele. Se acredita que a grande quantidade de gente presente às manifestações do último dia 7 lhe confere e assegura força política, engana-se por completo. No máximo, inibe a abertura de um processo de impeachment.

Preocupada com as crescentes adversidades do cotidiano, a maioria da população não está armada para guerra de nenhum outro tipo que não seja contra a inflação, o desemprego, a pandemia e o risco de apagão elétrico. Nos poderes Legislativo, Judiciário e até mesmo nas internas do Executivo a reação às palavras do mandatário foi péssima. Não apenas, mas também por causa das agressões reiteradas, ele tem se tornado uma companhia tóxica. Gente que normalmente pisa com cuidado quando o assunto envolve a figura do presidente tende a aumentar a firmeza dos passos.

Unido como nunca esteve por obra das agressões do chefe do Executivo, o Supremo cogita de tomar a iniciativa de enviar à Câmara, com todo o seu peso institucional e sem passar pela PGR, um pedido de impeachment se Bolsonaro concretizar as ameaças de não cumprir decisões judiciais — ele fez essa ameaça de duas formas: ao indicar em declarações públicas que pode atuar fora das "quatro linhas da Constituição" e por meio de recados que há algum tempo vem fazendo aos ministros. Daí a convicção da maioria do STF sobre a impossibilidade de ocorrer um recuo rumo à moderação (nem vou mencionar a patética "carta à nação" redigida pelo igualmente patético vampiro do Jaburu). Ao contrário, a expectativa é de exacerbação crescente.

Com apoio do colegiado, Fux já decidiu que não dará mais um passo na direção do diálogo. Se qualquer outra autoridade insistir na proposta de reabrir um canal de conversa, o ministro não rejeitará liminarmente, mas vai impor duas condições: 1) que cessem as agressões e, 2) que os termos do armistício sejam respeitados por Bolsonaro. Em caso de quebra do eventual acordo, a beligerância de um lado teria como resposta a mão firme do estado de direito.

No entendimento estabelecido nas internas do STF, o presidente da República precisará produzir prova material de que compreende o sentido da expressão “estado de direito”. Ela significa que o Judiciário é o único autorizado pela Constituição a reformar (para não dizer, cassar) decisões dos outros dois poderes, porque a última palavra é a da lei. Isso num Estado comandado pelo Direito, onde o império é o da legalidade. Até agora, no entanto, Bolsonaro não deu sinais de que compreende nem muito menos indica que pretende se submeter a esse preceito, tal a desfaçatez e a ligeireza com que fala em descumprir decisões oriundas do STF — que tem estratégia de reação montada para o caso de riscos institucionais leves, graves e gravíssimos.

Há quem considere que essa disposição presidencial possa levar a uma situação de ruptura decorrente de um impasse para o qual não haveria solução. Não é esse, contudo, o pensamento preponderante das togas. Caso o Poder Executivo se recuse a atender a um pedido dos governadores de ajuda federal para execução de operação por Garantia da Lei e da Ordem (GLO) diante da ocorrência de tumultos prejudiciais à realização das eleições, o Judiciário e o Legislativo podem solicitar tais ações independentemente da vontade do Planalto.

A hipótese ainda mais gravosa seria a de o presidente da República materializar as ameaças de reagir ao cumprimento de decisões da Corte. Bolsonaro já disse que faria isso. Seria coisa inédita na República. Desde que a República se entendeu por democrática, nenhum presidente envolvido em situações periclitantes levou adiante algo parecido, justamente porque a Constituição dá ao Direito a prerrogativa da palavra final. Seria uma situação delicada que levaria o presidente da Câmara a um beco sem saída.

Mesmo o Supremo propondo, a decisão final ainda cabe aos deputados, e a prerrogativa de levar ou não a questão ao plenário continua sendo do presidente da Casa do Povo, onde hoje se acumulam mais de 130 pedidos. Só que uma coisa é ignorar solicitações de populares, juristas ou mesmo de entidades de classe e outra, bem diferente, é ignorar um ofício do STF, naturalmente lastreado em robusta justificativa jurídica, solicitando a abertura de um processo de impeachment do presidente da República. Além do ineditismo do gesto, haveria o peso do signatário sobre a cabeça de Lira.

Enquanto Bolsonaro esbraveja no palanque, nos bastidores o Supremo se articula em seus canais de comunicação com o Legislativo, com a Polícia Federal e com os comandos das Forças Armadas na montagem das estratégias de precaução contra as arruaças de um presidente que tanto pode ser impedido no exercício do cargo quanto ser interditado como candidato. Cumpre, ademais, sublinhar: os inquéritos em curso no STF e no TSE produzirão resultados — seja no todo ou em parte — no ano eleitoral de 2022.

Como diria Pazuello, é simples assim.

Com Dora Kramer