quarta-feira, 27 de outubro de 2021

NINGUÉM MERECE!


Resolvi publicar a sequência histórica iniciada no post do último dia 9 devido ao desalento — não sei se o termo define a sensação que tenho ao acompanhar o noticiário, sobretudo a parte que trata da política tupiniquim, mas não me ocorre outro melhor diante de um país que vai de mal a pior. 

Li certa vez que furacões e tempestades tropicais são batizados a partir de uma lista de 126 nomes escolhidos pelo comitê da Organização Meteorológica Mundial e repetidos em um ciclo de 6 anos. E que, desde a implantação dessa lista, 67 nomes já foram retirados — o primeiro foi Hazel, em 1954, e o últimos foram Dennis, Katrina, Rita, Stan e Wilma, na violenta temporada de 2005. Talvez fosse a hora de incluir Bolsonaro em tão seleta confraria.

Dias atrás, nosso indômito capitão — cuja maior habilidade consiste em culpar os outros pelos próprios malfeitos — teve o desplante de dizer que a CPI do Genocídio conspurcou a imagem do Brasil aos olhos do mundo, e que vacinas contra a Covid podem causar AIDS. De tão rocambolesca, essa bolsonarice mereceu críticas do próprio deputado-réu que preside a Câmara e é unha e carne com sua alteza irreal. Não à toa, às vésperas da leitura do relatório final, a Comissão resolveu incluir o pedido de suspensão das redes sociais de Bolsonaro devido à disseminação de notícias falsas e desinformação sobre a pandemia. Também não à toa, o YouTube removeu 33 vídeos do canal de Bolsonaro desde abril.

Durante seis meses, o Brasil acompanhou o desenrolar da mais importante CPI da história desta banânia desde sua redemocratização. Reconheço que a visibilidade proporcionada pela transmissão ao vivo dos depoimentos e embates acalorados transformou alguns senadores desconhecidos em celebridades instantâneas, resgatou a imagem de outros e serviu de palanque eleitoral para a grande maioria. Mas é impossível negar que o relatório foi devastador para a imagem do governo como um todo — e para o Sultão do Bolsonaristão em particular.

Em quase 1.200 páginas, o senador Renan Calheiros enumerou uma teia de ações e omissões do governo, listando uma série de decisões equivocadas, exemplos de incompetência, suspeitas de corrupção e inúmeras situações que ressaltam o negacionismo e a pregação oficial contra as medidas de prevenção à doença. São acusações sérias e precisam ser investigadas. Para que todo esse trabalho não se perca, e imperativo que a encenação política dê agora lugar à realidade e os fatos ocupem o lugar das teorias.

Convencido pelos colegas, o relator suprimiu o crime de “genocídio” — até porque exageros motivados por conveniências políticas podem fragilizar a credibilidade do relatório e comprometer todo o árduo trabalho dos senadores. A princípio, Renan solicitou o indiciamento de Bolsonaro e outras 65 pessoas — entre as quais 4 ministros do governo (Marcelo Queiroga, Onyx Lorenzoni, Wagner Rosário e Braga Netto), três ex-ministros (Eduardo Pazuello, Ernesto Araújo e Osmar Terra) e 3 filhos do presidente (Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro). Na versão atualizada ontem, porém, já havia 81 nomes, sendo 79 de pessoas físicas e dois de pessoas jurídicas. É a primeira vez na história que uma comissão parlamentar aponta uma lista de delitos tão extensa atribuídos a um presidente da República.

O relator destaca em seu parecer que Bolsonaro agiu de modo consciente e sistemático contra os interesses do Brasil, colaborou fortemente para a propagação da Covid, foi responsável por erros de gestão e tinha interesse em encorajar os brasileiros a se expor ao contágio sem proteção, para que pudessem ser infectados pelo vírus sem barreiras. "A população inteira foi deliberadamente submetida aos efeitos da pandemia, com a intenção de atingir a imunidade de rebanho por contágio e poupar a economia, o que configura um ataque generalizado e sistemático no qual o governo tentou, conscientemente, espalhar a doença", diz o relatório em um dos trechos, segundo matéria publicada em O Globo.

O relatório está sendo votado enquanto eu rabisco estas linhas. Em entrevista à CNN Brasil, o senador Randolfe Rodrigues, vice-presidente da Comissão, afirmou que Bolsonaro é mencionado 80 vezes e lidera a lista dos supostos crimes com nove citações. Uma vez aprovadas pela Comissão, as propostas de indiciamento devem ser encaminhadas ao Ministério Público e à Câmara dos Deputados. O documento traz ainda 17 propostas legislativas, entre as quais a de instituição dos crimes de extermínio e de criação e disseminação de fake news, bem como de alterar a lei 1079/1950, estabelecendo um prazo de 30 dias, prorrogável por igual período, para manifestação do presidente da Câmara dos Deputados sobre pedidos de impeachment contra o presidente da República, e determinando que, uma vez cumpridos os requisitos legais, o recebimento da denúncia será deferido.

Atualização: Deu a lógica: o relatório foi aprovado pelo G7 e rechaçado pelos governistas MoeLarry e Curly e por um coió autodeclarado "independente", que admitiu que Bolsonaro "errou ao provocar aglomerações e ao dar declarações infelizes sobre a vacina", mas votou contra mesmo assim, afirmando que o relator "se perdeu, errou a mão". Renan, por seu turno, caprichou: "Há um homicida no Palácio do Planalto". Para o senador alagoano, Bolsonaro agiu como “missionário enlouquecido para matar o próprio povo”, e “bestas feras” tentaram ameaçar a Comissão, mas não obtiveram sucesso.

Na manhã de ontem, a lista de indiciados chegou a 79 pessoas. A pedido do senador Alessandro Vieira, o relator incluiu o nome do também senador Luis Carlos Heinze — defensor incondicional da eficácia do "tratamento precoce" e bobagens que tais. Ao final, Vieira voltou atrás (ainda que a contragosto), e Renan acolheu sua solicitação. O relatório deve ser apresentado ao presidente do Senado e encaminhado à PGR na manhã desta quarta-feira. Aras havia dito disse que não será omisso diante dos fatos levantados pela comissão — caso ele não dê sequência às investigações, os senadores estudam cogitam de ingressar com uma ação penal privada subsidiária no STF.

Em sua última manifestação na CPI, o sujo criticou o mal lavado, ou melhor, o senador Flávio "Rachadinha" Bolsonaro leu uma relação de 21 crimes “supostamente cometidos” por Renan durante a pandemia, entre eles o de “perseguição”, e disse que o relatório final era uma “peça política”.

Desde o início da pandemia, Bolsonaro, de maneira absolutamente irresponsável, colocou o governo na contramão de praticamente todas as recomendações feitas pelas autoridades sanitárias. Foi contra o isolamento social e a obrigatoriedade do uso de máscaras, demorou a comprar as vacinas, infringiu reiteradamente as medidas sanitárias impostas pelos governadores e prefeitos, praticou curandeirismo e charlatanismo, estimulou a população a se aglomerar, incentivou a produção de medicamentos reconhecidamente ineficazes contra a Covid, e por aí segue a procissão. A CPI ouviu vários depoimentos que mostraram ações explícitas de negacionismo e pregação oficial contra as medidas de prevenção, além de obter relatos de omissões que podem ter ampliado a contaminação e o número de mortes.

A despeito do que reza a Constituição de 1988 — que o próprio Ulysses Guimarães reconheceu ser imperfeita, tanto que admitia reforma —, não pode caber apenas ao presidente da Câmara a última palavra sobre os pedidos de impeachment; é preciso criar uma comissão permanente para avaliar as solicitações ou atribuir a outra já existente essa função. Para além disso, diferentemente das decisões de arquivamento de inquéritos determinadas por procuradores e promotores — que são submetidas a revisão —, as do procurador-geral da República são "soberanas". E o atual, Augusto Aras, disputa com Geraldo Brindeiro o epíteto de "engavetador-geral da República". Para mudar essa vergonha, o relator incluiu uma PEC que prevê que o procedimento seja seguido "inclusive pelo chefe do Ministério Público", ou seja, pelo procurador-geral de plantão.

Não faltam motivos para considerarmos o governo Bolsonaro o pior da história recente — eu achava a nefelibata da mandioca insuperável, mas o capitão conseguiu me surpreender. Claro que a escolha feita pelo sempre mui esclarecido eleitorado tupiniquim, no primeiro turno do pleito de 2018, não nos deixou alternativa que não apoiar o "furação Bolsonaro" no segundo. Até porque o bonifrate do então presidiário de Curitiba jamais foi uma opção. Mal sabíamos nós, então, que não tardaríamos a comprovar (da pior maneira possível) o quão acertado é o adágio segundo o qual "quem semeia ventos colhe tempestades". Que Deus nos ajude no ano que vem, se ainda houver um Brasil no ano que vem.

Como diz outro aforismo, "o que começa mal acaba mal". Mas eu não esperava que esse "mal" pudesse ser "tão pior". Em fevereiro de 2019, dias antes de Bolsonaro completar 2 meses no cargo para o qual ele próprio reconheceu que não foi talhado, eu comentei que me causava espécie o fato de muitos que defendiam o governo se comportarem nas redes sociais como petistas de sinal trocado, como se não tivessem se dado conta de que a disputa eleitoral terminara, que o treino acabara e que o jogo havia começado, embora o próprio presidente desse sinais de continuar em campanha. Pena eu não ter feito uma fezinha no jogo do bicho naquele dia. Segue um excerto da postagem:

"Não há como não ficar apreensivo diante da ingerência da prole real no governo federal, como se viu no lamentável episódio que resultou na exoneração do coordenador de campanha, advogado e pau-pra-toda-obra, Gustavo Bebianno. Escolher seus ministros e demiti-los a qualquer tempo é prerrogativa do presidente, mas não é aceitável ele transformar uma questão de somenos numa aula magna sobre as misérias políticas do governo. (...)Apoiar Bolsonaro no comando desta nau de insensatos é fundamental. Torcer contra e sabotar projetos importantes, como a PEC da Previdência e o pacote de medidas anticrime e anticorrupção, é coisa da escória inconformada com a derrota do ventríloquo e seu boneco, de quem não se poderia esperar comportamento diferente (...), mas daí a aplaudir as asnices do governo vai uma longo distância. (...)Para além do manifesto despreparo e do 'estilo despojado' de Bolsonaro — que beira o ridículo quando ele se deixa fotografar, numa reunião de cúpula sobre a reforma da previdência, trajando uma camiseta pirata do Palmeiras e calçando chinelos Rider —, a constante preocupação do presidente com supostas conspirações orquestradas por adversários reais e imaginários gera um clima de desconfiança e incerteza sobre seu processo mental e sua sistemática atuação em relação aos filhos. Talvez a imagem tosca que ele transmite seja uma construção planejada e conscientemente administrada, mas daí a ter um compromisso deliberado com o mau gosto..."

Dois anos e sete meses depois, durante a reunião do G20 em NYC, Bolsonaro voltou a demonstrar que não tem a menor noção da liturgia do cargo. Para além de outras barbaridades, ele sua comitiva de puxa-sacos foram fotografados como uma trupe de indigentes comendo pizza em pé, na calçada. Como bem lembrou o ex-ministro Maílson da Nóbrega em sua coluna na edição de Veja desta semana, o cargo de presidente da República tem alto valor simbólico — o modo como ele discursa, se veste e se dirige ao público repercute, e dele se esperam compostura, tolerância, sobriedade, temperança e autocontrole.

Bolsonaro não deveria calçar chinelos de plástico em público, nem receber autoridades trajando camisetas de clubes de futebol. Nada a ver com elitismo. Na democracia representativa, pressupõe-se que a eleição é um processo de seleção de pessoas da elite com atributos para o trato da coisa pública. Isso implica a percepção da liturgia e do significado do exercício do poder, requerendo posturas compatíveis com essas qualificações. Foi assim com George Washington.

Herói épico da vitória na Guerra da Independência contra a Inglaterra, o líder político, militar e estadista norte-americano renunciou à remuneração de comandante das tropas. Liderou com equilíbrio, firmeza e dignidade a assembleia que escreveu a Constituição. Lá, perguntado se o chefe do governo deveria ser tratado como “Sua Alteza”, optou por chamá-lo simplesmente de “Senhor Presidente”, como é até hoje. A força de seu caráter foi fundamental para a aprovação do texto final e para sua ratificação pelos treze estados originais.

Eleito por unanimidade pelo Colégio Eleitoral, Washington pensou nos mínimos detalhes quando se deslocou, em 1789, de Mount Vernon para Nova York, onde tomaria posse do cargo (a cidade foi a capital entre 1785 e 1790). Avaliava que cada gesto e cada ação criariam precedentes para os próximos governos. No discurso de posse, declarou que gostaria de renunciar a seus honorários. Seu desprendimento não resistiu à lógica. Não foi atendido nessa pretensão. Se fosse assim, somente os ricos, como ele era, poderiam exercer a Presidência.

Washington foi um mestre na arte da liturgia do cargo. O termo denomina os ritos e as cerimônias das igrejas cristãs, mas a área política adotou a ideia por seu conteúdo solene. Bolsonaro é o antípoda de Washington. Voltando ao lamentável episódio da pizza, houve quem idealizasse a cena como o retrato de um presidente autêntico, mas o que se viu ali se viu desleixo e comportamento lamentáveis.

Altos servidores precisam dar-se ao respeito. Washington foi talvez o presidente que mais honrou o cargo. Aqui, o desapreço de Bolsonaro pela forma como procede na Presidência bem diz de seu despreparo para ocupar a posição mais excelsa desta banânia. Vituperar aos berros as instituições — como fez na Avenida Paulista no último dia 7 de setembro —, chamar de canalha um ministro do STF e arvorar-se de rei medieval ao dizer que não cumpriria determinação judicial são provas eloquentes de seu destempero e desequilíbrio.

São muitos os casos de comportamento reprovável. Não é estranho, pois, que Bolsonaro não se preocupe em seguir, com bons modos, a liturgia do cargo. Estranho é que ele ainda continue ocupando o cargo. Vamos esperar que o relatório da CPI mude alguma coisa. Aturar esse indigitado por mais catorze meses, ninguém merece. Nem mesmo quem votou nele.

Retomo amanhã a sequência histórica a que me referi no início deste texto.