Há coisas que parecem acontecer somente no Brasil (e ainda dizem que Deus é brasileiro!). Ao contrário do que escreveu Karl Marx, a história nem sempre se repete como tragédia ou farsa. Às vezes — para o bem ou para o mal — ela reproduz fielmente o passado.
A julgar pelo exercício de futurologia que se convencionou chamar de pesquisas de intenções de voto, o ex-presidiário travestido de "ex-corrupto" e o maníaco que (ainda) ocupa o Palácio do Planalto disputarão o segundo turno em 2022. E a menos que o imprevisto tenha voto decisivo na assembleia dos acontecimentos, o picareta dos picaretas fará picadinho do capitão despirocado.
Relembrando: No âmbito judicial, Bolsonaro é investigado em seis inquéritos. O assim chamado inquérito das fake news, que tramita no STF, investiga um esquema de disseminação sistemática e organizada de informações falsas com o objetivo de fragilizar as instituições e a democracia.
Outro inquérito (esse no TSE) investiga o mandatário por ataques sem provas às urnas eletrônicas e tentativa de deslegitimar o sistema eleitoral brasileiro. Além disso, aliados do presidente foram alvo de operações contra atos ofensivos à democracia e às instituições do Estado. Para além disso, dos cinco filhos que teve em três casamentos, quatro são investigados pela PF (a exceção fica por conta da caçula, Laura, de 11 anos).
Bolsonaro enfrenta ainda desgaste nos campos político e econômico, com inflação, desemprego e pobreza em alta. Em Goiânia, ao lado de líderes evangélicos, o “mito” declarou: "Deus me colocou aqui, e somente Deus me tira daqui", ecoando uma frase já comum em seus discursos populistas. Já do lado de fora da igreja, tirou fotos com apoiadores e tomou caldo de cana. Depois de falar com os devotos, reuniu-se com políticos e empresários de Goiás em um local onde foram colocadas tendas e montado um palco.
Entre, entre 1994 e 2014, o resultado das urnas foi uma obviedade decorrente da ordem dos fatos. A exceção ocorreu justamente na disputa de 2018. O meio ambiente institucional já havia sido crestado pela Lava-Jato, e o ventre rasgado por uma faca, na terra devastada, deu à luz o ogro, que faz o que faz.
O excepcional se manifestou num determinado contexto, e o monstro insiste em perpetrar monstruosidades. A mais recente consiste em avançar contra a vacinação das crianças. Na distopia em curso, não basta a montanha de quase 620 mil cadáveres. É preciso também apostar numa forma de infanticídio. Ou a extrema direita não se revela por inteiro.
Infelizmente, essa gente não vai desaparecer. Continuará por aí a infernizar o país e a envenenar as instituições. E isso vai requerer especial atenção do futuro presidente da República, do Parlamento e do Judiciário.
Parte considerável do "empresariado bolsonarista" já foi "empresariado lulista", ainda que tivesse de se sujeitar a conviver com um ex-sindicalista malandro. Na alma profunda, muitos desses empresários sempre apreciaram as boçalidades que hoje ouvem de Bolsonaro sobre meio ambiente, armas, benefícios sociais, mulheres, negros, índios, crianças...
Se algum dia alguma entidade internacional resolver fazer o ranking das melhores elites econômicas da Terra, a nossa estará protagonizando o seu vexame no fim da lista. Enquanto o Estado brasileiro tiver o tamanho que tem, essas frações dos endinheirados ficarão grudadas ao poder de turno como craca, pois dependem desse Estado agigantado para seus negócios.
Bolsonaro é a própria voz da besta que, de modo surdo mas permanente, sussurra atraso, violência, reacionarismo, estupidez, preconceito. Esse coro do absurdo não constitui a maioria do país, mas a nefasta polarização semeada pelo PT de Lula e estrumada pelos tucanos ao longo das últimas décadas, os delinquentes que ora vemos no poder não estariam aí, a escandalizar o bom senso com seu festival de asneiras, ignorâncias, mistificações e ideias torpes e homicidas.
A voz do dublê de mau militar e parlamentar de propostas delinquentes deveria ter permanecido à margem do establishment político. As instituições jamais poderiam ter caído nas suas garras. Mas caíram. Além do fenômeno nativo da Lava-Jato, há o novo tempo da política, das notícias, da cultura, da moral, da ética, dos costumes.
Esse novo tempo é hoje plasmado pelas redes sociais. Elas se transformaram na ágora do mal. Em vez da sonhada democratização e da pluralidade de vozes, assistimos à organização de verdadeiras milícias de opinião, que se estruturam para normalizar a mentira, o engodo, o preconceito, a discriminação.
Não é só a voz do idiota que se horizontalizou com a de Schopenhauer. Algo mais aconteceu. Desfez-se a ideia de representação. Nos EUA, a invasão do Capitólio fala por si mesma. E notem que o principal responsável por um grave atentado à democracia resta impune, fazendo política.
Difícil prever as consequências calamitosas de uma eventual reeleição de Bolsonaro. Quando se vê empresários, alguns graúdos, flertando com essa possibilidade, a gente se dá conta do buraco em que se meteu. Por outro lado, a derrota do tiranete, se de fato acontecer, não enterra a distopia que ele vocaliza nem põe fim à vandalização do debate de que ele é, a um só tempo, consequência e causa.
O bolsonarismo nasceu da desordem e a alimenta. O próximo presidente eleito, seja ele quem for, encontrará um novo velho Brasil arcaico. Antes das redes sociais, por mais que os confrontos pudessem ser acerbos, muitas vezes pouco elegantes, inexistia uma máquina organizada para espalhar o ódio, a desinformação, a agressão a valores elementares da ciência, o estímulo à violência, o incentivo ao preconceito.
O país tem de enfrentar — e isso inclui os três Poderes da República — a máquina organizada para espalhar mentira, ódio e preconceito, estimulando a agressão a pilares da sociedade democrática, que se acoita nas redes sociais.
Existe hoje um país em que milhares, talvez milhões, ainda que constituam a minoria, preferem dançar com o risco de morte a tomar vacina. Pior: criminosos, sob o pretexto de exercitar a liberdade de expressão, espalham mentiras sobre imunizantes, inventando malefícios sem apontar comprovação ou evidência técnica.
As milícias digitais sem rosto têm hoje o poder de desestabilizar governos, de intimidar a Justiça, de ameaçar Parlamentos, de impedir a correta aplicação de políticas públicas que salvam vidas.
É evidente que Bolsonaro é hoje, entre os políticos, o principal beneficiário dessa máquina criminosa. Ele conseguiu levar milhares às ruas para protestar contra o suposto risco das urnas eletrônicas, numa pregação escancaradamente golpista.
Quem quer que venha a governar o país — e queira Deus que não seja nem Bolsonaro nem Lula — terá de se preparar para esse enfrentamento. E terá de manter um diálogo lúcido com o Congresso e com o Judiciário para que os delinquentes, que se escondem sob o manto da liberdade de expressão, paguem por seus crimes, inclusive o de pandemia.
Mentir sobre imunizantes e atacar os métodos comprovadamente eficazes de reduzir o contágio é sinônimo de espalhar a doença. E o presidente fez e faz isso. Essa é apenas uma das razões pelas quais ele deveria ser despachado, sem escalas, do Palácio do Planalto para o Presídio da Papuda.
Com Reinaldo Azevedo