O caso do Brasil atual é inverso. A mancha da cegueira nacional não é inata nem pequena. É como se toda a terra, águas, ar e vida nacional estivessem desprovidos de receptores de luz. Uma cegueira que nos impede de reagir àquilo que desfila a nossa frente e que olhamos com os dois olhos bem abertos: a destruição a marretadas de leis, instituições, Estado de Direito, civilidade em sociedade. Ou, pelo menos, assim pareceu ao longo da última semana.
Raras vezes houve traficância política tão espúria no Congresso Nacional, em detrimento de um Brasil viável no futuro. Nesse quesito, igualam-se em cinismo, demagogia e hipocrisia os bolsonaristas e oposicionistas que votaram (469 votos a 17) a favor da PEC de estelionato eleitoral, embrulhada em papel de presente social. Na verdade, não se igualam. Os primeiros foram mais explícitos, não precisavam esconder seu interesse pessoal, os segundos se mostraram mais covardes. Como escreveu Hélio Schwartzman na Folha — no artigo “Falso dilema” —, “paro um pouco antes de concluir que, com uma oposição dessas, o Brasil merece mesmo ser governado por Jair Bolsonaro e seus comparsas”.
Além da opção nacional por não querer ver, marchamos rumo ao precipício empunhando um apagão cívico que, a cada ciclo eleitoral, se torna menos desculpável. Segundo dados elaborados pelo Instituto Quaest a pedido do RenovaBR, só 15% dos eleitores brasileiros lembram em quem votaram para o Congresso na eleição de 2018! E, mesmo assim, se consideram no direito de reclamar: mais de 65% dos entrevistados se declararam insatisfeitos com a atuação dos congressistas. Não espanta que mais da metade (55%) admita não saber para que serve um deputado, justo quando a gula de poder no Congresso atinge níveis e$catológicos. Faltam menos de dois meses para que os 156,4 milhões de brasileiros aptos a votar façam suas escolhas — se é que chegaremos lá em condição de pensar num futuro decente.
Nos 100 anos de sigilo que o bolsonarismo tenta impor à memória nacional, não pode caber também o pretendido apagão da cultura, da educação cívica, ambiental, científica e sexual brasileiras. Como explicar a vida e o Brasil de hoje ao adulto de amanhã que veio ao mundo num hospital público enquanto a mãe era violentada por um anestesista/estuprador em série? Como, no futuro, explicar o Brasil de 2022 ao bebê de 1 mês e à sua irmã de 6 anos que na semana passada perderam o pai, assassinado por gostar de ser petista? O que fará no Brasil de amanhã a menina loirinha de menos de 2 anos com a foto em que aparece como coadjuvante da felicidade familiar, junto a um bolo de aniversário em formato de revólver calibre 38? Sairá atirando na democracia como o avô, tios e pai? Ou terá a chance de conviver com outras gentes? Está tudo em aberto. Não só aqui, no mundo todo.
Trinta e cinco anos atrás, o historiador americano Arthur M. Schlesinger Jr., um dos conselheiros mais próximos do ouvido de John Kennedy, debruçou-se sobre a despedida do século em que vivia. “Os dois maiores vilões pereceram — o fascismo com um estrondo, o comunismo com um gemido”, escreveu. Acrescentou que o triunfalismo do mundo democrático obscureceu a precariedade dessa vitória. “Se, no século XXI, o sistema falhar na construção de um mundo mais humano, próspero e pacífico, como falhou no século XX, estará lançado o convite para a emergência de credos alternativos assemelhados ao fascismo e ao comunismo”, avisou.
Acertou só pela metade — justamente a que nos toca.
Texto de Dorrit Harazim — Jornalista e documentarista