segunda-feira, 29 de maio de 2023

20 ANOS DE CORRUPÇÃO

 

O livro "20 ANOS DE CORRUPÇÃO", de Ivo Patarra, é um amplo documento sobre a corrupção no Brasil moderno. De um ponto de vista factual, há pouco a acrescentar. Apenas me disponho a enumerar algumas dúvidas que me afligem sempre que trato do assunto. Uma delas, talvez a mais persistente, surgiu com a série de candidatos à Presidência que passaram a usar o tema do combate à corrupção como bandeira e que terminaram seus mandatos sob acusações pesadas de que haviam sucumbido àquilo que prometeram varrer da vida política do país. 

Já mencionei em livro a primeira eleição direta logo após a redemocratização, quando os dois candidatos que disputaram o segundo turno tinham como trunfo eleitoral, respectivamente, a luta contra os marajás do serviço público e a luta a favor da ética na política. Considerando os acontecimentos em anos e décadas que se seguiram, caberia perguntar: seria a corrupção uma característica intrínseca às elites políticas brasileiras? Minha resposta buscava então fugir de soluções simplistas. Sem, evidentemente, negar as responsabilidades pessoais, procurei ver no sistema eleitoral uma das principais causas da corrupção. 

Ancoradas em superproduções televisivas, as eleições brasileiras se tornaram muito caras no primeiro período da redemocratização. Na década de 1990, rivalizavam em preços com as norte-americanas. Esse dinheiro não era obtido com métodos tradicionais: rifas, festas e contribuição de simpatizantes. Os personagens principais do financiamento de campanha eram empresários que tinham ou almejavam negócios com o governo. Os custos de campanha tornaram-se, na verdade, investimentos. 

Esse contato mais próximo entre políticos e empresários contribuiu para que alguns tentassem mimetizar o estilo de vida dos próprios milionários. O caso mais radical foi o do ex-governador Sérgio Cabral — um de seus objetos de desejo era um helicóptero idêntico ao do empresário Eike Batista

O problema estrutural do custo das eleições foi parcialmente superado pela lei que transformou o financiamento de campanha numa responsabilidade pública. Isso minimizou as chances de corrupção na chegada ao poder, mas criou outra armadilha: como evitar a corrupção para exercer o poder no contexto de um Congresso fragmentado? 

O escândalo do mensalão foi financiado com dinheiro privado. Na época, parte desse dinheiro era destinado a alimentar também campanhas políticas. Passado esse período, encontramos de novo o mesmo problema no governo Bolsonaro, eleito em 2018. Aqui já não havia dinheiro privado para atrair apoio dos partidos. A saída foi encontrá-lo no Orçamento. 

O chamado “orçamento secreto” significou um avanço considerável da prática da corrupção sobre os mecanismos de combate a ela, pois já traz embutido um antídoto contra seu principal obstáculo: a transparência. Na relação do Executivo com forças regionais que trocam seu apoio por verbas orçamentárias, reside um problema fundamental não resolvido no Brasil. 

O governo Bolsonaro, que se elegeu com o propósito de combater a corrupção, conseguiu, na verdade, sofisticá-la. O mecanismo de vitória eleitoral foi similar ao do início da redemocratização, sendo que Bolsonaro ainda se aproveitou de alguns efeitos do movimento rebelde de junho de 2013 e da Operação Lava-Jato, com repercussão continental.
 
A entrada do juiz Sergio Moro no governo convenceu a muitos que as campanhas contra a corrupção não passam de manobra eleitoral, mas isso não significa que a Lava-Jato possa ser reduzida a uma simples atuação partidária. Num período anterior à própria ditadura, o movimento tenentista já combatia a corrupção, e, nos anos 1950, as revoltas de Aragarças e Jacareacanga também a denunciavam. Mas, para uma operação que se dizia técnica e apresentava novidades em sua própria estrutura de trabalho, como a unificação da PGR, da PF e do Fisco, a proximidade com o bolsonarismo foi muito desgastante. Resta então mais uma dúvida: por que, ao longo do tempo, todas as grandes operações policiais contra a corrupção fracassaram? 
 
A estrutura jurídica brasileira garante ampla liberdade de defesa, e suas trilhas, quando bem exploradas por advogados competentes, acabam por neutralizar o exaustivo trabalho da Polícia Federal, que sempre esbarra em obstáculos intransponíveis. A própria Lava-Jato viveu esse problema, ainda que, paradoxalmente, tenha se beneficiado também de alterações legais. A principal delas foi a lei que regulou a delação premiada, mas
 isso não bastou para que a Lava-Jato não terminasse abatida por vazamentos divulgados pelo site Intercept Brasil e pela ação determinada da 2ª Turma do STF

No pacote de alterações legais havia ainda a possibilidade de prisão em segunda instância. O tema foi igualmente decidido pelo STF, para o qual a prisão só pode ser realizada quando esgotados todos os recursos legais. A lei previa a possibilidade de prisão após a confirmação do veredito por um juízo colegiado, apesar dos recursos cabíveis na suprema corte. A questão acabou voltando ao Congresso, onde os parlamentares já decidiram que não somente vão mantê-las nas gavetas como votarão projetos que abrandem o combate à corrupção. 
 
Se entendemos a luta contra a corrupção como um longo processo, talvez seja razoável dizer que ela vive um momento de defensiva no Brasil, caracterizado pela reação à Lava-Jato entre políticos e ministros do STF. Mas também pelo agravamento da crise econômica, que coloca no topo da agenda outros temas, como desemprego, renda, segurança alimentar. É a única maneira de entender a existência de um orçamento secreto, anticonstitucional, porém combatido brandamente na sociedade. 

Em síntese, o movimento anticorrupção que levou milhões de pessoas às ruas vive hoje um refluxo. Nada indica que seguirá assim eternamente, mas de nada adiantará reacendê-lo sem compreender, de um lado, suas limitações, e de outro, a extraordinária resiliência dos que defendem o status quo.
 
Prefácio de Fernando Gabeira