sábado, 23 de março de 2024

NADA É IMPOSSÍVEL (OU QUASE NADA)

SE NÃO BUSCARMOS O IMPOSSÍVEL, ACABAMOS POR NÃO REALIZAR O POSSÍVEL.

Mauro Cid entrou para a história das delações premiadas como um caso único de delator que desqualifica a própria delação antes do recebimento do prêmio judicial. 
Num áudio mui suspeito, que chegou à mídia de modo igualmente suspeito, ouve-se uma suposta conversa de Cid com um amigo (cujo nome ele diz não lembrar) na qual o delator diz que foi pressionado a contar inverdades e que o inquérito inconcluso e as futuras condenações são "pratos prontos". Seu advogado qualificou o áudio como um " desabafo de alguém que teve a vida destruída" e afirmou que "de forma alguma compromete a lisura, seriedade e correção dos termos de sua colaboração premiada". 
Cid aprendeu com Bolsonaro que, em caso de perigo, deve-se atirar no próprio pé e jogar a culpa nos outros. Aparentemente, Cid tentou prestar mais um serviço a Bolsonaro, que, encurralado, sonhava com um tumulto que lhe permitisse reduzir seus crimes a um debate sobre tecnicidades processuais. Mas foi buscar lã e saiu tosquiado.
Chamado a depor no gabinete do ministro Alexandre de Moraes, Cid afirmou que mantinha os termos e o conteúdo da delação, mas teve sua prisão preventiva decretada a pedido da Polícia Federal mesmo assim, e ainda corre o risco de ter sua delação anulada.
Não faltam à PF provas de que Bolsonaro urdiu o golpe, tramou a venda das joias sauditas e encomendou cartões de vacina falsos para ele sua filha caçula transitarem livremente na terra do Pateta. O conteúdo encontrado no celular de Cid e os depoimentos dos ex-chefes do Exército e da Aeronáutica dariam  para condenar Bolsonaro e seus cupinchas  a penas que eles só conseguiriam cumprir integralmente se reencarnassem. 


Atribui-se a Albert Einstein a autoria do brocardo "o impossível só é impossível até que alguém duvide e prove o contrário". Nos tempos de Colombo, Cabral e companhia, ninguém sonhava que as caravelas de então se transformariam em gigantescos navios de cruzeiro, ou que "máquinas voadoras" cruzariam o Atlântico em poucas horas. Mas toda regra tem exceção. 

Quando escreveu o romance Da Terra à Lua (1865),  Júlio Verne  "errou" por míseras 20 milhas o local exato de onde a Apollo 11 seria lançada dali a 96 anos. E em 1870, quando escreveu 20.000 Léguas Submarinas, o romancista francês concebeu o Nautilus e o descreveu com uma riqueza de detalhes impressionante, considerando que o primeiro submarino nuclear — batizado de SS Nautilus em sua homenagem — seria lançado ao mar dali a 84 anos. Mas isso é outra conversa.
 
Se toda regra tem exceção, talvez seja a exceção que confirme a regra. Na contramão do axioma de Einstein, um conjunto de problemas aparentemente simples permanece sem solução há milhares de anos, ainda que gênios como Euclides, Arquimedes, Descartes e Newton tenham se debruçado sobre eles. Não se sabe ao certo como esses problemas surgiram, mas o mais famoso deles — a quadratura do círculo — remonta ao papiro de Rhind, que foi copiado há cerca de 4 mil anos pelo escriba egípcio Amósis (não confundir com o faraó homônimo).
 
Resumidamente, o objetivo desse conjunto de problemas era encontrar a quadratura do círculo, a trissecção do ângulo, a duplicação do cubo e a inserção de todos os polígonos regulares em uma circunferência — ou, em outras palavra — desenhar um quadrado cuja área fosse a mesma de um círculo, dividir um ângulo em três ângulos iguais, desenhar um cubo com o dobro do tamanho de outro cubo e dividir uma circunferência em partes iguais.  
 
Atribui-se a Donald Westlake o axioma segundo o qual "sempre que algo nos parece fácil, é porque existe uma parte que não ouvimos". Voltando as problemas em questão, a dificuldade consiste em resolvê-los usando somente um compasso e uma régua sem marcações, que eram as ferramentas disponíveis na época em que eles foram propostos (como registrou Euclides em Os Elementos).
 
Arquimedes demonstrou ser possível medir exatamente uma distância usando uma régua com apenas duas marcas. Isso significa que, com ferramentas um pouco mais sofisticadas, os problemas seriam facilmente solucionados. Mas o desafio está em resolvê-los respeitando as regras do jogo.
 
Durante o tempo que passou na cadeia por afirmar que Sol não era um deus, mas uma rocha que ardia em vermelho vivo, e que a Lua refletia sua luz, Anaxágoras tentou construir um quadrado com a mesma área de um círculo usando régua e compasso, mas seus esforços foram em vão. Mais ou menos na mesma época, Hipócrates de Quio — cuja obra foi sintetizada na geometria euclidiana — obteve uma solução parcial ficou conhecida como Lúnula de Hipócrates de Q

Em 1771, o matemático suíço Leonhard Euler chegou a duas novas lúnulas que podiam ser transformadas em quadrados, mas sua descoberta não contribuiu para a quadratura do círculo. Leonardo da Vinci também não resolveu os problemas — mas incorporou seu talento artístico para criar desenhos com eles.
 
No segundo volume de Os Quatro Livros da Medida, o matemático e pintor renascentista Albrecht Dürer usou as ferramentas euclidianas para obter a quadratura do círculo e a trissecção do ângulo, mas foi somente em 1796 que seu conterrâneo Carl Friedrich Gauss conseguiu construir um polígono regular com 17 lados, e a análise feita por ele para comprovar sua descoberta abriu as portas para ideias posteriores sobre a chamada teoria de Galois.
 
O fato de tantas mentes brilhantes se esforçarem tanto para conseguir algo que pode ser feito facilmente com as ferramentas apropriadas contribuiu para impulsionara matemática com a geometria analítica, a álgebra, os números complexos e o número π, entre outros. No caso da quadratura do círculo, a solução veio nas pegadas da descoberta de que π é um número transcendental. 

Após séculos de uma obsessão que chegou a receber o nome de tetragonidzein — que, numa tradução aproximada do grego, significa algo como "ocupar-se com a quadratura do círculo" — a busca chegou ao fim. Até então, milhares de pessoas "sofreram da doença da quadratura do círculo", que, segundo o matemático Augustus De Morgan, afetava os entusiastas mal informados. 
 
Graças a Gauss, sabe-se que π (a área do círculo com raio 1) é transcendente e, portanto, a quadratura do círculo é impossível. E o matemático francês Pierre Wantzel comprovou que os outros três problemas também são insolúveis. Mas nem assim as pessoas se deram por vencidas. 

Em 1897, o Senado de Indiana (EUA) discutiu uma proposta de legalizar um método de quadratura do círculo descoberto pelo médico e matemático amador Edwin L. Goodwin (ela chegou a ser aceita por um comitê, mas acabou sendo rejeitada). Dizem os matemáticos que não existe em sua seleta confraria quem nunca recebeu um email com soluções para os problemas em assunto, mas nenhuma delas revelou ser a "bala de prata".
 
As limitações propostas no arcabouço construído por Euclides levou seus contemporâneos — e às gerações seguintes — a concluir o que se suspeiva desde a Grécia antiga, ou seja, que a solução dos problemas era impossível. Ainda assim, tentar resolvê-los foi muito enriquecedor.
 
Com g1