Dois dias depois que a PF indiciou Jair Bolsonaro e outros 16 investigados no caso da falsificação de cartões de vacina, Veja divulgou o "desabafo de alguém que teve a vida destruída", nas palavras do advogado do também indiciado Mauro Cid. Num longo solilóquio que teria ocorrido por mensagens no WhatsApp com um interlocutor incerto e não sabido, o ex-esbirro do capetão criticou o ministro Alexandre de Moraes, disse que foi constrangido a delatar inverdades e que os inquéritos e as futuras sentenças comporiam um jogo de cartas marcadas cujo desfecho seria um lote de condenações incontornáveis e preconcebidas.
"Quem mais se fodeu fui eu", choramingou o ex-quase coronel. "Quem mais perdeu coisa fui eu. Ninguém perdeu carreira, ninguém perdeu vida financeira como eu perdi. Todo mundo já era 4 estrelas, já tinha atingido o topo, o presidente teve Pix de milhões, ficou milionário. Tá todo mundo aí. Os políticos... Político é até bom essas porra, que depois ele consegue se eleger fácil. O único que teve pai, filha, esposa envolvido [sic], o único que perdeu a carreira, o único que perdeu a vida financeira toda, fodido, fui eu."
Como o vazamento ocorreu no dia em que Bolsonaro completou 69 anos, comentou-se que Cid quis dar um presente de aniversário a seu amo, que, na bica de ver o sol nascer quadrado, trocaria todo o leite condensado da despensa por um tumulto que rebaixasse seus crimes a um debate sobre tecnicidades processuais. Mas o que parecia um mimo se tornou um presente de grego para o mimado e em pesadelo para o mimador. E antes mesmo que as insinuações virassem matéria-prima para a desqualificação dos inquéritos, o diretor-geral da PF representou contra Cid junto ao STF, e Moraes o intimou a prestar esclarecimentos.
O depoimento foi conduzido pelo desembargador Airton Vieira, juiz instrutor do gabinete do ministro, e contou com a presença de integrantes da PF e da PGR. O depoente conformou o que dissera na colaboração premiada, ou seja, recuou do tom adotado nos áudios. "Nunca houve induzimento às respostas. Nenhum membro da PF o coagiu a falar algo que não teria acontecido", consta da transcrição do depoimento. "Afirma não ter havido pressão do Judiciário ou da polícia. A decisão foi própria, de livre e espontânea vontade”, prossegue.
Cid afirmou ainda que os áudios e as falas foram proferidas numa “conversa privada” em que fez um "desabafo". Também afirmou "não estar lembrado exatamente com quem conversou nem quando", que não sabe como as mensagens foram divulgadas, e que teria havido um encontro entre Bolsonaro e Alexandre de Moraes — sobre o qual não deu maiores detalhes nem o ministro se dignou de comentar.
Resumo da ópera: Como delator, Cid jamais poderia comentar o contexto e os termos da delação com outros interlocutores que não têm acesso ao material. Ao fazê-lo, violou o sigilo dos termos da delação – desrespeitando mais uma regra. Ferir a confidencialidade da delação caracteriza descumprimento de medida cautelar, e o intuito de atrapalhar a apuração caracteriza obstrução de Justiça.
Cid chegou a desmaiar quando recebeu voz de prisão, mas foi atendido por brigadistas no local e logo se recuperou. Como as consequências sempre vêm depois, o acordo de colaboração subiu no telhado — sem prejuízo do aproveitamento dos crimes confessados e todas as provas materiais e testemunhais que os corroboram — e a pretensão da defesa de Bolsonaro de converter crimes já mapeados numa grande polêmica sobre tecnicidades processuais virou pó. Após uma fase de distanciamento cenográfico, delator e delatado tornaram a frequentar a conjuntura juntinhos, e agora naufragam abraçados.