domingo, 21 de abril de 2024

LIRA DOS OITO ANOS


A lira é um instrumento musical de cordas que simboliza a conexão com o divino e a expressão da alma por meio da música e da arte — dizem que Nero dedilhava a sua durante o Grande Incêndio de RomaLira dos Vinte Anos é uma antologia póstuma de poesias de Álvaro de Azevedo (1831-1852), e Arthur Lira, o imperador da Câmara que, na reta final do segundo mandato, começa a perceber que o Olimpo não tem escada. 

No início do próximo ano legislativo, Lira dará adeus ao cetro e à coroa e trocará a mansão oficial com geladeira cheia, mordomo de libré e um batalhão de serviçais pelos rigores maldição que marcou a trajetória de antecessores que não souberam se reinventar, como Marco Maia, que não conseguiu se reeleger deputado pelo RS, e João Paulo CunhaHenrique Eduardo AlvesEduardo Cunha, que fizeram escala na cadeia — o primeiro, carbonizado pelo mensalão, renunciou ao mandato; o segundo, após exercer 44 anos de mandatos ininterruptos como deputado, perdeu uma eleição para o governo do RN, tentou retornar à Câmara, mas foi novamente barrado pelo eleitor; e o terceiro, artífice do impeachment de Dilma, foi afastado do cargo pelo STF e cassado pelos colegas. 

Rodrigo Maia, um dos presidentes mais longevos da Casa do Povo, viu naufragar o plano de fazer seu sucessor graças a Bolsonaro e seu tratoraço (o emedebista Baleia Rossi foi feito picadinho por Arthur Lira). Representante do Rio de Janeiro, "Botafogo" virou secretário do governo paulista sob João Doria; vigiado pela Abin paralela do capetão, foi acossado pelo bolsonarismo nas redes sociais; antevendo um novo fiasco se tentasse a sorte das urnas, migrou para a iniciativa privada. 
 
Alheio à síndrome do que está por vir, Lira desafina, digo, desafia o ocaso exercitando o pecado capital da soberba. Apaixonado pela própria voz, chamou de "incompetente" o articulador político do Planalto Alexandre Padilha. O tiro ricocheteou no dono da articulação. Lula atirou de volta: "Só de teimosia, Padilha vai ficar muito tempo nesse cargo". Pressentindo o cheiro de queimado, o deputado Elmar Nascimento, candidato de Lira à própria sucessão, tentou apagar, nos bastidores, o incêndio que afugenta o governo para candidaturas alternativas. 
 
Os poderes de Lira decrescem na proporção direta do avanço do calendário eleitoral. Premidos pela necessidade de acomodar aliados nas prefeituras de seus redutos, os deputados estão mais interessados nas urnas do que na agenda econômica do ministro Fernando Haddad — o que transforma a irascibilidade de Lira numa aposta arriscada: com sua "teimosia", Lula sinaliza a disposição de demonstrar que a divindade da Câmara e o pedaço do Centrão que carrega o seu andor têm mais a perder do que o Planalto. 
 
Dono e senhor da pauta Câmara, Lira pode facilitar ou infernizar o segundo ano de um governo que mantém um olho na inflação dos alimentos e outro na curva descendente das pesquisas. Dono do Diário Oficial, Lula como que convida Lira e sua turma a lançarem um olhar para a caixa registradora da Codevasf, da CEF e dos ministérios terceirizados ao centrão. 

Nesse jogo, uma mão suja a outra. O xamã do PT não ignora que seu governo alimenta parlamentares que estarão na trincheira inimiga em 2026. Minoritário no Congresso, move-se como se desejasse esclarecer que todos que quiserem continuar comendo na mesa do governo terão ao menos que lavar os pratos. 
 
Lira abespinhou-se com o Planalto contra um pano de fundo manchado pelo caso Marielle. Um pedaço do Centrão uniu-se à milícia parlamentar bolsonarista na malograda articulação para abrir a cela do deputado Chiquinho Brazão. O soberano da Câmara enxergou as digitais do articulador político do Planalto na difusão da maledicência segundo a qual sua debilidade ficou gravada no painel eletrônico que manteve o preso na tranca. Daí os disparos contra Padilha, que, para desassossego de Lira, continua dando expediente na Presidência da República. 

A presença de Chiquinho Brazão e seus cúmplices em presídios federais evidencia uma mudanças dos ventos na PF, que desmonta velhas blindagens. O mesmo ânimo parece pautar as ações da PGR depois que a fábrica de escudos que operava sob Augusto Aras encerrou suas atividades. Nesse contexto, até os aliados já avaliam que Lira, cultor de mumunhas orçamentárias e sócio fundador da confraria do antigo orçamento secreto, brinca de corda sem atentar para o nó que asfixiou alguns dos seus antecessores.
 
Com Josias de Souza