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terça-feira, 5 de novembro de 2019

A FAMÍLIA REAL E OS INIMIGOS DO REI


No dia 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves obteve 480 votos de um Colégio Eleitoral (contra 180 de Paulo Maluf) e teria sido nosso primeiro presidente civil desde o golpe de 64 se não tivesse morrido antes de tomar posse. Mas quis o destino que o posto coubesse ao eterno donatário da capitania do Maranhão, que encerou o bigode, abotoou o jaquetão e atendeu ao chamado.

Em 1989, o caçador de marajás de araque derrotou o fundador do partido dos trabalhadores que não trabalham, dos estudantes que não estudam e dos intelectuais que não pensam, mas não concluir seu mandato, mas, devido a suspeitas de corrupção, acabou renunciando ao cargo em dezembro de 1992, às vésperas do julgamento do seu processo de impeachment.

Com a saída de Collor pela porta dos fundos, Itamar Franco subiu a rampa do Planalto. Sua gestão é mais associada à ressurreição do Fusca, já que os frutos do Plano Real, comeu-os o grão-duque tucano, que se elegeu presidente, reinstituiu a reeleição e se serviu dela alegremente. Na sequência, vieram o demiurgo de Garanhuns, a nefelibata da mandioca (que também deixou o palácio pela porta dos fundos) e vampiro do Jaburu (que a delação do moedor de carne bilionário Joesley Batista reduziu à condição de presidente pato-manco). Com um time desses, não espanta que o Gigante Adormecido se recuse a despertar.

No primeiro turno das eleições passadas, os esclarecidíssmos eleitores descartaram as poucas opções "menos trágicas" (falo de Henrique Meirelles, João Amoedo e Álvaro Dias; as demais eram um elenco de feira de horrores) e escalaram para o embate final os dois extremistas do espectro político partidário. Sem alternativa para evitar a volta da quadrilha vermelha, a parcela sensata da população apoiou o capitão caverna, que derrotou o bonifrate do presidiário de Curitiba por 57,7 milhões de votos a 43,1 milhões — vale nota que 42,3 milhões de eleitores se abstiveram de comparecer, ou votaram em branco, ou anularam o voto.

Em entrevista à FOLHA em 1994, o último presidente ditadura militar — que preferia o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo e chegou a dizer que "daria um tiro no coco" se fosse criança e seu pai ganhasse salário mínimo — proferiu a seguinte pérola: "A grande falha da revolução foi terem me escolhido presidente da República. Eu fiz essa abertura aí, pensei que fosse dar numa democracia, e deu num troço que não sei bem o que é." Figueiredo morreu em 1999, mas não é difícil imaginar como ele avaliaria o contexto atual se anda caminhasse pelo mundo dos vivos.
     
Em recente entrevista ao Congresso em FocoCiro Gomes culpou Lula pela tragédia econômica, social e política que o país está vivendo e disse que o petista "não tem grandeza, só pensa em si e virou um enganador profissional" (assista ao vídeo no final desta postagem). Da fala do ex-governador do Ceará podemos extrair dois ensinamentos: 1) às vezes, até um burro cego consegue achar a cenoura; 2) a política ama a traição mas não perdoa os traidores).

Bolsonaro tomou posse em 1º de janeiro para oferecer paz, probidade e empregos. Mas jamais desceu do palanque ou formou uma base de apoio que lhe permitisse governar. Pelo contrário: chutou para escanteio suas promessas de campanha, vestiu o paramento de usineiro de crises e passou a guerrear contra tudo e todos (noves fora os bolsomínions atávicos, que não passam de militantes petistas com sinal trocado).

O candidato que prometeu acabar com a reeleição tornou-se o presidente que "só pensa naquilo". A pretexto de não ser conivente com a "velha política", quase pôs a perder os esforços conjuntos de Paulo Guedes e Rodrigo Maia pela aprovação da reforma previdenciária — que, por necessária, todos que o antecederam tentaram fazer, mas que, por impopular, nenhum deles conseguiu levar adiante. Curiosamente, a maior vitória deste governo até agora não tem a digital de Bolsonaro, que, além de não ter se empenhado em ajudar, fez o que pode para atrapalhar.

Em vez de apoiar o pacote de medidas anticorrupção do ministro da Justiça, o "mito" passou a sabotá-lo quando viu que a popularidade do auxiliar crescia enquanto a sua própria despencava (políticos não regam a plantinha do vizinho se ela tem potencial para fazer sombra em seu próprio quintal). Também não cumpriu as promessas de reduzir o número de ministérios para 15 (temos hoje 22 pastas), o de parlamentares em 20% (continuamos amamentando 513 deputados e 81 senadores), de baixar a carga tributária, de enxugar a folha de pagamento do funcionalismo, de acabar com indicações políticas na escolha de ministros e funcionários do primeiro escalão, e por aí afora. Mas trabalhou com afinco em outra frentes. Senão vejamos.

1) Acrescentou ao lema "Deus acima de tudo, Brasil acima de todos" a sugestiva expressão "noves fora Bolsonaro & Filhos";

2) Criou a estatal Crisebras e nomeou a filharada para dirigi-la e distribuir ofensas a torto e a direito — conseguindo, em alguns casos, ser alvo de críticas até dos apoiadores mais atávicos;

3) Ficou "de mal" de Rodrigo Maia, que se empenhou em conseguir votos para aprovar a reforma previdenciária;

4) Fritou e exonerou Gustavo BebiannoRicardo Vélez e os generais Santos Cruz e Floriano Peixoto, pondo fim a amizades antigas simplesmente porque estava chovendo e Zero Dois não podia ir brincar lá fora (curiosamente, quando o ministro do Turismo foi indiciado no caso do Laranjal do PSL, Bolsonaro disse que não há motivo para afastá-lo do cargo);

5) Deixou um ministro francês falando sozinho para ir cortar o cabelo — e aproveitou para gravar uma live enxovalhando o presidente esquerdista da OAB; 

6) Desdenhou a oferta da França para combater as queimadas da Amazônia e troçou da aparência da mulher de Emmanuel Macron;

7) Indicou o filho Eduardo para a embaixada nos EUA (depois voltou atrás e pediu ao rebento que servisse ao país aqui mesmo, como líder do PSL na Câmara) e, cereja do bolo, sujeitou-se  a lamber as botas de Dias ToffoliDavi Alcolumbre e Gilmar Mendes para blindar o primogênito das investigações do MP-RJ;

Dias atrás, Bolsonaro expressou ao vivo e em cores seu desgosto com a vitória do peronista Alberto Fernández na Argentina e se recusou a cumprimentá-lo e a sua vice — a bizarra mistura de Gretchen com Maga Patológica que atende por Cretina Kirchner. Saliente-se que, horas antes da manifestação do capitão, Fernández havia reafirmado sua sintonia com Lula e exigido a soltura do criminoso em um tuíte. Também parabenizara o petralha pelos 74 anos completados no domingo retrasado, referindo-se à escumalha vermelha como "homem extraordinário injustamente preso". “Espero te ver logo”, postou o peronista no Twitter. Até que não seria má juntar o lixo daqui e o de lá no mesmo saco e jogar aos tubarões.

Entre janeiro e outubro, por descontentamento (próprio ou dos filhos) ou influência do ex-astrólogo e guru presidencial Olavo de Carvalho, Bolsonaro substitui nada menos que 35 integrantes do alto escalão do governo (média de um a cada oito dias) e, com os préstimos da prole, vem entregando atritos, suspeições e um tipo de déficit muito mais grave do que a ruína fiscal, posto que localizado entre as orelhas dos membros do seu clã. Só a falta de miolos explica o que disse Zero Três em entrevista à jornalista Leda Nagle (detalhes nas postagens anteriores).

Esse penúltimo despautério poderia resultar na cassação de Zero Três por quebra de decoro parlamenta, mas eu duvido que chegaremos a isso. Seu papai presidente falou coisa muito pior quando ele próprio era deputado e absolutamente nada aconteceu. E essa história de líderes do PT, PSOL, PSB, PDT, PCdoB, Rede e da Minoria pedirem a abertura de processo contra o parlamentar por suposta "incitação ao crime", "apologia ao crime" e outras bobagens... Façam-me um favor! Vão procurar o que fazer!

José Nêumanne pondera que erra feio quem considera a declaração de Eduardo Bolsonaro sobre um “novo AI-5” como grave ataque à democracia. O Estado de Direito de verdade aguenta desaforo. Os maiores erros do deputado foram ignorar exemplos históricos de que o “velho AI-5” engoliu seus donos, como Lacerda e JK, e que não há perspectiva nem expectativa de convulsões sociais lideradas pela esquerda para protestar contra o governo e o estado da economia. O que se teme é que a população expresse sua indignação nas ruas contra eventual decisão do STF que desfavoreça combate à corrupção e tente sepultar a Lava-Jato. Aí, sim, a cobra vai fumar.

Fato é que a plataforma reformista do ministro da Economia enfrenta muitas dificuldades, mas nenhuma se equipara ao processo de autocombustão de Bolsonaro & Filhos. É uma maluquice atrás da outra, uma espécie de projeto de extermínio da oposição por meio da autossabotagem. Aos pouquinhos, suas altezas reais deixam claro que não são conservadoras, mas apenas arcaicas, e que não desejam levar o país para a direita, mas fazê-lo andar em marcha à ré.

Enfim, pode-se apagar um vídeo do Twitter, mas é impossível deletar os pendores autoritários do DNA dos Bolsonaro. Por sorte, a democracia tem remédios contra esse tipo de patologia. Para mim, tanto se me dá quanto se me deu o que acontecerá com a família real; importa-me, isso sim, o futuro do país onde nasci, cresci e vivo até hoje — mais por imposição das circunstâncias do que por opção, mas isso não vem ao caso.