O supremo laxante ataca
outra vez. Na tarde de ontem, o paladino de araque soltou Júlio Cesar Pinto de Andrade e Paulo Cesar Haenel Pereira Barreto, que
estavam presos por determinação do juiz Marcelo
Bretas, responsável pelos processos da Lava-Jato
no Rio de Janeiro. Os pedidos dos dois não tinham terminado de tramitar nas
instâncias inferiores, situação em que é de praxe o STF rejeitá-los sem sequer analisar seus argumentos. Infelizmente, as leis são criadas, no Brasil, para não funcionar ou
para favorecer criminosos com cacife para bancar advogados estrelados e,
mediante a interposição de toda sorte de recursos, embargos e chicanas nas quatro
instâncias do Judiciário, empurrar para as calendas o julgamento final dos
processos e o consequente cumprimento da pena. Enquanto a Lava-Jato contabilizou 244 condenações contra 159 acusados, o STF levou 3 anos, 2 meses e 26 dias
para condenar Nelson Meurer — o único político com foro privilegiado condenado pelo Supremo até agora —, cujo nome figurava na primeira "Lista de Janot", entregue pelo ex-procurador em março
de 2015. É ou não é escarnecer dos contribuintes, que são submetidos a impostos
escorchantes para bancar essa e outras afrontas supremas? Quosque tandem, Catilina?
Dito isso, segue o baile:
Desde a proclamação da independência, o Brasil já
teve sete constituições (ou oito, já que muitos consideram a
Emenda
nº 1, outorgada pela junta militar em 1969, como a
“Constituição de 1969”). A mais atual, promulgada em e de outubro de 1988, tem
250 artigos, e não só é o
obelisco
da prolixidade, mas também uma
colcha
de retalhos — na medida em que foi remendada mais de uma centena de
vezes. A título de comparação, a constituição norte-americana, promulgada em
1787, tem apenas 7 artigos e recebeu 27 emendas nos últimos 220 anos.
A reforma previdenciária se tornou necessária quase no mesmo
instante em que a Constituição Cidadã
distribuiu direitos a rodo, mas sem apontar qual seria a origem dos recursos que os
bancariam. Aliás, a palavra “Direito”
é mencionada 76 vezes na nossa Carta
Magna, enquanto "Dever" surge apenas 4 oportunidades e "Produtividade” e “Eficiência” aparecem duas e uma
vez, respectivamente, o que nos leva à seguinte pergunta: O que esperar de um país que tem 76 direitos, quatro deveres, duas
produtividades e uma eficiência? No máximo, uma política pública de
produção de leis, regras e regulamentos que quase nunca guardam relação com o
mundo real.
Voltando à PEC da Previdência,
há duas décadas que se vem tentando, sem êxito, mexer nesse vespeiro. Diante da
insustentabilidade da situação, coube a Bolsonaro,
muito a contragosto, pôr a questão como um dos focos principais de seu governo
e nomear Paulo Guedes para
auxiliá-lo.
Graças ao Posto Ipiranga
e a Rodrigo Maia, a proposta foi
aprovada em segundo turno na Câmara e, uma vez chancelada pelo Senado, deverá
gerar uma economia de quase 1 trilhão de reais nos próximos dez anos, liberando
dinheiro para investimentos em outras áreas, como saúde e educação. Trata-se da
maior vitória política do governo até o momento, apesar de o presidente ter
feito o possível para embolar o meio de campo. É certo que o projeto foi bombardeado
pela oposição, mas é igualmente certo que Bolsonaro
foi o maior responsável por atrasos e outros percalços — isso sem mencionar o
amadorismo e o egocêntrico irresponsável das hostes bolsonaristas no Congresso.
O conjunto de medidas anticrime e anticorrupção, outra promessa de campanha do capitão, arrasta-se a duras penas, não só pela falta de articulação do Executivo com o
Legislativo, mas principalmente porque muitos parlamentares veem no ex-juiz da Lava-Jato o maior pesadelo dos
políticos corruptos. E com efeito: não fosse sua atuação à
frente da operação em Curitiba, o picareta dos picaretas estaria livre, leve,
solto e muito provavelmente aboletado na poltrona do gabinete mais cobiçado do
Palácio do Planalto. Mas o fato é que o projeto do ministro Sérgio Moro está paralisado e corre o risco de sair da Câmara bem mais
magro do que entrou — já foram retiradas do texto a parte que toca à prisão em
segunda instância e a que implanta o plea
bargain (instrumento que permite ao acusado se declarar culpado e se livrar
do processo).
A exemplo de como atuou durante a tramitação da mexida previdenciária
na Câmara,
Bolsonaro mais atrapalha
do que ajuda o avanço da proposta de medidas anticrime. Não à
toa,
FHC,
Marco Aurélio Mello,
Tasso
Jereissati,
Simone Tebet e até
Alexandre Frota já lhe recomendaram, cada
qual a sua maneira e com suas próprias palavras, que calasse a boca. E com razão:
somente nos 100 primeiros dias de governo o capitão
colecionou uma miríade de episódios de desgaste político, dentre
os quais vale citar a
investigação sobre milícias envolvendo
o gabinete de
zero um na
Alerj, as
candidaturas de laranjas de seu partido,
os entrechoques entre
militares e a ala do governo sob influência
do escritor Olavo de Carvalho, a
crise no MEC, a
troca de farpas com o Congresso e
a dificuldade no encaminhamento da
reforma da Previdência.
Como se vê,
deixar-se fotografar como um mulambo em cerimônia no Alvorada, com camisa do
Palmeiras sob o paletó e chinelos
deixando aparecer os dedos dos pés, seria o de menos
. E o mesmo vale para
o
compartilhamento de um vídeo escatológico e obsceno, durante o
Carnaval, a pretexto de homenagear a
moralidade. E como se nada isso bastasse, o ministro da Economia
foi
massacrado por uma caterva de parlamentares de esquerda — carnificina
que se repetiu quando o ministro da Justiça
prestou esclarecimentos aos deputados sobre os vazamentos tendenciosos do
material criminoso obtido pelo
Interpret
de
Verdevaldo das Couves, o
impoluto.
Dos 5 filhos que
Bolsonaro
teve em 3 casamentos, os três mais velhos palpitam alegremente no governo e
agem como se o
clã fosse uma espécie
de
Família Real. Essa insólita relação familiar tem provocado uma série de
intrigas
intra murus — especialmente
entre os militares — e desestabilizado uma gestão que começou mal e que
já
esteve sob séria ameaça de ser abortada pelo menos uma vez. Sem cargos no
governo, mas agindo como membros de uma monarquia, a prole presidencial se
dedica a fabricar crises.
Zero Um é
senador, mas seus rolos com a Justiça remontam ao mandato de deputado federal,
devido a suspeitas de contratação de funcionários-fantasma e retenção de parte
dos salários dos que compareciam de corpo presente para dar expediente no
gabinete de
Flávio na
Alerj, gerenciado por
Fabrício Queiroz, ex-factótum da família
Bolsonaro que domina a arte do
desaparecimento com desenvoltura capaz de deixar
David Copperfield,
Chris
Angel e outros mestres do ilusionismo roxos de inveja. Graças ao papai
presidente, as investigações foram suspensas pelo togado supremo e
presidente de todos os togados supremos, de quem, de uma hora para outra,
Jair Bolsonaro se tornou amigo de fé, irmão e camarada (volto a esse
assunto mais adiante).
Quem quiser se esconder do
Zero Dois pode dar plantão na porta de seu gabinete na Câmara Municipal
do Rio. Em Brasília,
onde passa a maior parte do tempo, se empenha em fazer jus ao epíteto de
pitbull presidencial criando polêmicas e semeando a cizânia no entorno palaciano. Foi ele o
responsável pela
demissão
de Gustavo Bebianno, em fevereiro, e do general
Carlos
Alberto Santos Cruz, em junho, apenas para mencionar dois de seus
feitos mais emblemáticos.
Genioso, beligerante e adepto a teorias conspiratórias,
já arreganhou os
dentes para o
general Mourão e atacou mais de uma vez o
general
Augusto Heleno. Sua relação
com o pai chega a ser obsessiva. Em 2000, aos 17 anos, desbancou a mãe e se
tornou o vereador mais jovem do Rio, mas sentiu-se usado quando descobriu que o
pai apoiou sua candidatura para evitar a reeleição da ex-esposa. Pai e filho
ficaram sem se falar por anos e, para reconquistar o rebento, o primeiro passou
a ser mais tolerante com os caprichos do segundo.
Observação: Carluxo jamais simpatizou com Bebianno e sempre teve ciúmes de sua
influência sobre o pai. As rusgas começaram durante a campanha, quando o
factótum tinha carta branca para tomar as decisões mais delicadas e o rebento,
que tinha um palpite a dar sobre tudo, se via limitado a cuidar das redes
sociais da família. Vencida a eleição, o poder do “cão de guarda” se sobrepôs
ao do “pitbull”: o primeiro assumiu a Secretaria-Geral da Presidência da
República e o segundo, que aspirava ao comando da Secretaria de Comunicação,
ficou sem cargo no governo.
Entre os 22 ministros de Estado, nenhum compartilhou mais a
intimidade do presidente do que Bebianno, que atuou como faz-tudo
durante a campanha e, antes disso, como advogado, ganhou a confiança do então
deputado ao se oferecer para defendê-lo de graça de uma acusação de
homofobia. Pego no contrapé, o ministro disse não entender a violência com que
vinha sendo atacado e a facilidade com que foi abandonado. A certa altura das
gravações que vieram a público, disse Bebianno a Bolsonaro: “O senhor está bem envenenado”.
Mais adiante, ele revelaria o
nome do envenenador: “O senhor Carlos Bolsonaro fez macumba
psicológica na cabeça do pai”.
Zero Três é
deputado federal. Até onde se sabe, não tem contas a acertar com a Justiça,
como o irmão mais velho, nem é tão polêmico quanto o do meio, mas é defensor ferrenho
do porte e posse de armas de fogo e constantemente lembrado por um comentário que fez em julho do ano passado, durante uma
palestra em Cascavel (PR): perguntado sobre a hipótese de uma intervenção
militar no caso de o STF impedir que
o então candidato Jair Bolsonaro, se
eleito, assumisse a presidência, Eduardo
disse que aí já se estaria caminhando
para um regime de exceção, e que para fechar o Supremo não era preciso mandar sequer um jipe, bastava enviar um soldado e um cabo. Tirada do contexto, sua assume ares de provação, e
como tal viralizou nas redes sociais a uma semana do segundo turno das
eleições.
Dono de um ego grande como o dos irmãos, o caçula dos três
se tem na conta de "assessor presidencial especialíssimo" e já disse
que pretende concorrer à Presidência, caso o pai não dispute a reeleição
em 2022. Por enquanto, serve-lhe o cargo de embaixador nos EUA, para o
qual é tão despreparado quanto o pai para presidir esta banânia: ao defender
sua nomeação, "o garoto", como é tratado pelo presidente, disse ser qualificado porque
fala inglês e espanhol, é amigo da família presidencial norte-americana
e, dentre outros méritos, fritou
hambúrgueres no estado do Maine.
Até onde se sabe, a experiência
como como chapeiro de lanchonete não faz parte dos requisitos exigidos de um
candidato a embaixador, sem mencionar que a
rede Popeyes, onde
Zero Três diz ter trabalhado, não serve
hambúrgueres, mas
frango frito. Demais disso, a consultoria
legislativa do Senado
elaborou parecer — respaldado na
Súmula
Vinculante nº 13 do STF — segundo o qual a indicação, se realmente for
formalizada, configura
nepotismo.
Bolsonaro nega, talvez porque "
nepotismo" vem de
"
nipote", que, numa tradução direta do italiano, significa
neto ou
sobrinho, e "
o
garoto é filho, talkey? ".
Gozações à parte, o Supremo já se manifestou com a
interpretação de que, para agentes
políticos, a súmula não se aplica. No entendimento dos consultores
legislativos, porém, embaixadores não
são agentes políticos. Discute-se agora se a inclusão de representantes
diplomáticos nessa categoria é rejeitada pelo conjunto de leis e não encontra
eco no histórico do STF.
Se a moda pega, Zero Um — que ostenta no currículo habilidade inigualável
em fazer investigação virar pizza e é um dos poucos pizzaiolos habilitados a preparar a incomum pizza de laranja — pode pleitear o
cargo de embaixador do Brasil na Itália.
Quanto a Zero Dois... bem,
ainda não se sabe qual embaixada o menino prodígio pretende chamar de sua,
mas fontes do Planalto afirmam que ele apresentará sua reivindicação assim
que aprender a escrever em português no Twitter.
Falta presidente à Presidência. Falta presidente para dar
vida à figura do presidente e pôr ordem no governo, na bancada do Congresso,
na família, enfim... Ser carismático,
só, não basta. Falando em carisma, leia a seguir o que Dora Kramer escreveu em sua coluna na edição de
Veja desta semana, que,
juntamente com a de J.R. Guzzo, é tudo que ainda vale a pena ler depois que a revista juntou a Verdevaldo na tentativa de assassinar a reputação de Moro e procuradores da Lava-Jato e soltar o repulsivo parteiro do Brasil Maravilha, aquele que se diz a alma viva mais honesta da galáxia, enviado pela Divina Providência para acabar com a fome, presentear a imensidão de
desvalidos com três refeições por dia e multiplicar a fortuna dos milionários:
No Brasil é praxe
considerar o carisma um ativo no capital político de candidatos a cargos
majoritários. É visto pelo eleitorado como um bom atributo, embora não
imprescindível, conforme atestaram as duas vitórias de Fernando Henrique em primeiro turno. Contariam como regra as derrotas
de José Serra e Geraldo Alckmin para a Presidência caso não tivessem sido eleitos
governadores em São Paulo e perdido a disputa nacional para Dilma Rousseff, nota zero no quesito
magnetismo pessoal.
É relativo, portanto,
o valor do fascínio, algo inexplicável exercido sobre o eleitorado, embora tal
fator tenha peso nas disputas eleitorais. Disso dão notícia as licenças obtidas
por Fernando Collor, Luiz Inácio da Silva e Jair Bolsonaro para dar expediente no
Palácio do Planalto, que caracterizam-se pela
vulgaridade na linguagem, nos excessos cometidos em nome da informalidade de
modo a transparecer autenticidade, o que, ao mesmo tempo, lhes confere uma
autoconfiança inesgotável. Do ego hipertrofiado emerge a intolerância ao
contraditório e se estabelece a dinâmica da atuação via confronto permanente.
No universo deles a luta é uma constante, a razão de ser. Costumam cultivar
mitologia em torno de si, sustentados numa biografia que nem sempre conta a
verdade completa. Alimentam fantasias persecutórias de modo a ativar desejos de
desmontes de alegadas conspirações. Para isso recorrem a instrumentos de
identificação, ressentimento e distração.
No primeiro momento dizem
o que a maioria quer ouvir. No segundo, exacerbam sentimentos e finalmente
ocupam todos os espaços com um falatório sem importância, embora atrativo para
os opositores, a fim de distrair o público, que, assim, estaria afastado do
debate sobre os problemas concretos, imobilizado quanto a cobranças de
governança eficaz. Todos eles manifestam
horror à imprensa livre, ao mesmo tempo que recorrem sistematicamente a ela
para se manter populares, cultuam uma biografia mitológica nem sempre baseada
em fatos e procuram dar a impressão de que vêm “de fora”, não obstante tenham
se valido das regras “de dentro” para se eleger.
A dinâmica desse tipo
é manter-se permanentemente como centro das atenções, para o bem ou para o mal.
Para isso eles lançam mão de quaisquer recursos, por mais fora de esquadro que
sejam ao juízo da racionalidade, pois falam aos que com eles se identificam
pela via do ressentimento à deriva. Cultivam inimigos
externos e internos, menosprezam o papel do Parlamento — seja composto de “300
picaretas” ou de representantes da “velha política”. São imunes aos chamamentos
à razoabilidade, pois se veem como heróis cujo roteiro privilegia a fé em
detrimento do conhecimento. Tudo isso os une, e
não seria preciso estar atento a eles não fosse a necessidade de combatê-los
por terem também inequívoca e malévola parte com o autoritarismo.