quinta-feira, 22 de agosto de 2019

O GOVERNO E O KÖNIG DER SCHEIßE




O supremo laxante ataca outra vez. Na tarde de ontem, o paladino de araque soltou Júlio Cesar Pinto de Andrade e Paulo Cesar Haenel Pereira Barreto, que estavam presos por determinação do juiz Marcelo Bretas, responsável pelos processos da Lava-Jato no Rio de Janeiro. Os pedidos dos dois não tinham terminado de tramitar nas instâncias inferiores, situação em que é de praxe o STF rejeitá-los sem sequer analisar seus argumentos. Infelizmente, as leis são criadas, no Brasil, para não funcionar ou  para favorecer criminosos com cacife para bancar advogados estrelados e, mediante a interposição de toda sorte de recursos, embargos e chicanas nas quatro instâncias do Judiciário, empurrar para as calendas o julgamento final dos processos e o consequente cumprimento da pena. Enquanto a Lava-Jato contabilizou 244 condenações contra 159 acusados, o STF levou 3 anos, 2 meses e 26 dias para condenar Nelson Meurero único político com foro privilegiado condenado pelo Supremo até agora —, cujo nome figurava na primeira "Lista de Janot", entregue pelo ex-procurador em março de 2015. É ou não é escarnecer dos contribuintes, que são submetidos a impostos escorchantes para bancar essa e outras afrontas supremas? Quosque tandem, Catilina?
 
Dito isso, segue o baile:

Desde a proclamação da independência, o Brasil já teve sete constituições (ou oito, já que muitos consideram a Emenda nº 1, outorgada pela junta militar em 1969, como a “Constituição de 1969”). A mais atual, promulgada em e de outubro de 1988, tem 250 artigos, e não só é o obelisco da prolixidade, mas também uma colcha de retalhos — na medida em que foi remendada mais de uma centena de vezes. A título de comparação, a constituição norte-americana, promulgada em 1787, tem apenas 7 artigos e recebeu 27 emendas nos últimos 220 anos.

A reforma previdenciária se tornou necessária quase no mesmo instante em que a Constituição Cidadã distribuiu direitos a rodo, mas sem apontar qual seria a origem dos recursos que os bancariam. Aliás, a palavra “Direito” é mencionada 76 vezes na nossa Carta Magna, enquanto "Dever" surge apenas 4 oportunidades e "Produtividade” e “Eficiência” aparecem duas e uma vez, respectivamente, o que nos leva à seguinte pergunta: O que esperar de um país que tem 76 direitos, quatro deveres, duas produtividades e uma eficiência? No máximo, uma política pública de produção de leis, regras e regulamentos que quase nunca guardam relação com o mundo real.

Voltando à PEC da Previdência, há duas décadas que se vem tentando, sem êxito, mexer nesse vespeiro. Diante da insustentabilidade da situação, coube a Bolsonaro, muito a contragosto, pôr a questão como um dos focos principais de seu governo e nomear Paulo Guedes para auxiliá-lo.

Graças ao Posto Ipiranga e a Rodrigo Maia, a proposta foi aprovada em segundo turno na Câmara e, uma vez chancelada pelo Senado, deverá gerar uma economia de quase 1 trilhão de reais nos próximos dez anos, liberando dinheiro para investimentos em outras áreas, como saúde e educação. Trata-se da maior vitória política do governo até o momento, apesar de o presidente ter feito o possível para embolar o meio de campo. É certo que o projeto foi bombardeado pela oposição, mas é igualmente certo que Bolsonaro foi o maior responsável por atrasos e outros percalços — isso sem mencionar o amadorismo e o egocêntrico irresponsável das hostes bolsonaristas no Congresso.

O conjunto de medidas anticrime e anticorrupção, outra promessa de campanha do capitão, arrasta-se a duras penas, não só pela falta de articulação do Executivo com o Legislativo, mas principalmente porque muitos parlamentares veem no ex-juiz da Lava-Jato o maior pesadelo dos políticos corruptos. E com efeito: não fosse sua atuação à frente da operação em Curitiba, o picareta dos picaretas estaria livre, leve, solto e muito provavelmente aboletado na poltrona do gabinete mais cobiçado do Palácio do Planalto. Mas o fato é que o projeto do ministro Sérgio Moro está paralisado e corre o risco de sair da Câmara bem mais magro do que entrou — já foram retiradas do texto a parte que toca à prisão em segunda instância e a que implanta o plea bargain (instrumento que permite ao acusado se declarar culpado e se livrar do processo).

A exemplo de como atuou durante a tramitação da mexida previdenciária na Câmara, Bolsonaro mais atrapalha do que ajuda o avanço da proposta de medidas anticrime. Não à toa, FHC, Marco Aurélio Mello, Tasso Jereissati, Simone Tebet e até Alexandre Frota já lhe recomendaram, cada qual a sua maneira e com suas próprias palavras, que calasse a boca. E com razão: somente nos 100 primeiros dias de governo o capitão colecionou uma miríade de episódios de desgaste político, dentre os quais vale citar a investigação sobre milícias envolvendo o gabinete de zero um na Alerj, as candidaturas de laranjas de seu partido, os entrechoques entre militares e a ala do governo sob influência do escritor Olavo de Carvalho, a crise no MEC, a troca de farpas com o Congresso e a dificuldade no encaminhamento da reforma da Previdência.

Como se vê, deixar-se fotografar como um mulambo em cerimônia no Alvorada, com camisa do Palmeiras sob o paletó e chinelos deixando aparecer os dedos dos pés, seria o de menos. E o mesmo vale para o compartilhamento de um vídeo escatológico e obsceno, durante o Carnaval, a pretexto de homenagear a moralidade. E como se nada isso bastasse, o ministro da Economia foi massacrado por uma caterva de parlamentares de esquerda — carnificina que se repetiu quando o ministro da Justiça prestou esclarecimentos aos deputados sobre os vazamentos tendenciosos do material criminoso obtido pelo Interpret de Verdevaldo das Couves, o impoluto.

Dos 5 filhos que Bolsonaro teve em 3 casamentos, os três mais velhos palpitam alegremente no governo e agem como se o clã fosse uma espécie de Família Real. Essa insólita relação familiar tem provocado uma série de intrigas intra murus — especialmente entre os militares — e desestabilizado uma gestão que começou mal e que já esteve sob séria ameaça de ser abortada pelo menos uma vez. Sem cargos no governo, mas agindo como membros de uma monarquia, a prole presidencial se dedica a fabricar crises.

Zero Um é senador, mas seus rolos com a Justiça remontam ao mandato de deputado federal, devido a suspeitas de contratação de funcionários-fantasma e retenção de parte dos salários dos que compareciam de corpo presente para dar expediente no gabinete de Flávio na Alerj, gerenciado por Fabrício Queiroz, ex-factótum da família Bolsonaro que domina a arte do desaparecimento com desenvoltura capaz de deixar David Copperfield, Chris Angel e outros mestres do ilusionismo roxos de inveja. Graças ao papai presidente, as investigações foram suspensas pelo togado supremo e presidente de todos os togados supremos, de quem, de uma hora para outra, Jair Bolsonaro se tornou amigo de fé, irmão e camarada (volto a esse assunto mais adiante).

Quem quiser se esconder do Zero Dois pode dar plantão na porta de seu gabinete na Câmara Municipal do Rio. Em Brasília, onde passa a maior parte do tempo, se empenha em fazer jus ao epíteto de pitbull presidencial criando polêmicas e semeando a cizânia no entorno palaciano. Foi ele o responsável pela demissão de Gustavo Bebianno, em fevereiro, e do general Carlos Alberto Santos Cruz, em junho, apenas para mencionar dois de seus feitos mais emblemáticos. Genioso, beligerante e adepto a teorias conspiratórias, já arreganhou os dentes para o general Mourão e atacou mais de uma vez o general Augusto Heleno. Sua relação com o pai chega a ser obsessiva. Em 2000, aos 17 anos, desbancou a mãe e se tornou o vereador mais jovem do Rio, mas sentiu-se usado quando descobriu que o pai apoiou sua candidatura para evitar a reeleição da ex-esposa. Pai e filho ficaram sem se falar por anos e, para reconquistar o rebento, o primeiro passou a ser mais tolerante com os caprichos do segundo.

Observação: Carluxo jamais simpatizou com Bebianno e sempre teve ciúmes de sua influência sobre o pai. As rusgas começaram durante a campanha, quando o factótum tinha carta branca para tomar as decisões mais delicadas e o rebento, que tinha um palpite a dar sobre tudo, se via limitado a cuidar das redes sociais da família. Vencida a eleição, o poder do “cão de guarda” se sobrepôs ao do “pitbull”: o primeiro assumiu a Secretaria-Geral da Presidência da República e o segundo, que aspirava ao comando da Secretaria de Comunicação, ficou sem cargo no governo.

Entre os 22 ministros de Estado, nenhum compartilhou mais a intimidade do presidente do que Bebianno, que atuou como faz-tudo durante a campanha e, antes disso, como advogado, ganhou a confiança do então deputado ao se oferecer para defendê-lo de graça de uma acusação de homofobia. Pego no contrapé, o ministro disse não entender a violência com que vinha sendo atacado e a facilidade com que foi abandonado. A certa altura das gravações que vieram a público, disse Bebianno a Bolsonaro: O senhor está bem envenenado. Mais adiante, ele revelaria o nome do envenenador: “O senhor Carlos Bolsonaro fez macumba psicológica na cabeça do pai”.

Zero Três é deputado federal. Até onde se sabe, não tem contas a acertar com a Justiça, como o irmão mais velho, nem é tão polêmico quanto o do meio, mas é defensor ferrenho do porte e posse de armas de fogo e constantemente lembrado por um comentário que fez em julho do ano passado, durante uma palestra em Cascavel (PR): perguntado sobre a hipótese de uma intervenção militar no caso de o STF impedir que o então candidato Jair Bolsonaro, se eleito, assumisse a presidência, Eduardo disse que aí já se estaria caminhando para um regime de exceção, e que para fechar o Supremo não era preciso mandar sequer um jipe, bastava enviar um soldado e um cabo. Tirada do contexto, sua assume ares de provação, e como tal viralizou nas redes sociais a uma semana do segundo turno das eleições.

Dono de um ego grande como o dos irmãos, o caçula dos três se tem na conta de "assessor presidencial especialíssimo" e já disse que pretende concorrer à Presidência, caso o pai não dispute a reeleição em 2022. Por enquanto, serve-lhe o cargo de embaixador nos EUA, para o qual é tão despreparado quanto o pai para presidir esta banânia: ao defender sua nomeação, "o garoto", como é tratado pelo presidente, disse ser qualificado porque fala inglês e espanhol, é amigo da família presidencial norte-americana e, dentre outros méritos, fritou hambúrgueres no estado do Maine.

Até onde se sabe, a experiência como como chapeiro de lanchonete não faz parte dos requisitos exigidos de um candidato a embaixador, sem mencionar que a rede Popeyes, onde Zero Três diz ter trabalhado, não serve hambúrgueres, mas frango frito. Demais disso, a consultoria legislativa do Senado elaborou parecer — respaldado na Súmula Vinculante nº 13 do STF — segundo o qual a indicação, se realmente for formalizada, configura nepotismo. Bolsonaro nega, talvez porque "nepotismo" vem de "nipote", que, numa tradução direta do italiano, significa neto ou sobrinho, e "o garoto é filho, talkey? ".

Gozações à parte, o Supremo já se manifestou com a interpretação de que, para agentes políticos, a súmula não se aplica. No entendimento dos consultores legislativos, porém, embaixadores não são agentes políticos. Discute-se agora se a inclusão de representantes diplomáticos nessa categoria é rejeitada pelo conjunto de leis e não encontra eco no histórico do STF. 

Se a moda pega, Zero Um — que ostenta no currículo habilidade inigualável em fazer investigação virar pizza e é um dos poucos pizzaiolos habilitados a preparar a incomum pizza de laranja — pode pleitear o cargo de embaixador do Brasil na Itália. Quanto a Zero Dois... bem, ainda não se sabe qual embaixada o menino prodígio pretende chamar de sua, mas fontes do Planalto afirmam que ele apresentará sua reivindicação assim que aprender a escrever em português no Twitter. 

Falta presidente à Presidência. Falta presidente para dar vida à figura do presidente e pôr ordem no governo, na bancada do Congresso, na família, enfim... Ser carismático, só, não basta. Falando em carisma, leia a seguir o que Dora Kramer escreveu em sua coluna na edição de Veja desta semana, que, juntamente com a de J.R. Guzzo, é tudo que ainda vale a pena ler depois que a revista juntou a Verdevaldo na tentativa de assassinar a reputação de Moro e procuradores da Lava-Jato e soltar o repulsivo parteiro do Brasil Maravilha, aquele que se diz a alma viva mais honesta da galáxia, enviado pela Divina Providência para acabar com a fome, presentear a imensidão de desvalidos com três refeições por dia e multiplicar a fortuna dos milionários:

No Brasil é praxe considerar o carisma um ativo no capital político de candidatos a cargos majoritários. É visto pelo eleitorado como um bom atributo, embora não imprescindível, conforme atestaram as duas vitórias de Fernando Henrique em primeiro turno. Contariam como regra as derrotas de José Serra e Geraldo Alckmin para a Presidência caso não tivessem sido eleitos governadores em São Paulo e perdido a disputa nacional para Dilma Rousseff, nota zero no quesito magnetismo pessoal. 

É relativo, portanto, o valor do fascínio, algo inexplicável exercido sobre o eleitorado, embora tal fator tenha peso nas disputas eleitorais. Disso dão notícia as licenças obtidas por Fernando Collor, Luiz Inácio da Silva e Jair Bolsonaro para dar expediente no Palácio do Planalto, que caracterizam-se pela vulgaridade na linguagem, nos excessos cometidos em nome da informalidade de modo a transparecer autenticidade, o que, ao mesmo tempo, lhes confere uma autoconfiança inesgotável. Do ego hipertrofiado emerge a intolerância ao contraditório e se estabelece a dinâmica da atuação via confronto permanente. No universo deles a luta é uma constante, a razão de ser. Costumam cultivar mitologia em torno de si, sustentados numa biografia que nem sempre conta a verdade completa. Alimentam fantasias persecutórias de modo a ativar desejos de desmontes de alegadas conspirações. Para isso recorrem a instrumentos de identificação, ressentimento e distração.

No primeiro momento dizem o que a maioria quer ouvir. No segundo, exacerbam sentimentos e finalmente ocupam todos os espaços com um falatório sem importância, embora atrativo para os opositores, a fim de distrair o público, que, assim, estaria afastado do debate sobre os problemas concretos, imobilizado quanto a cobranças de governança eficaz. Todos eles manifestam horror à imprensa livre, ao mesmo tempo que recorrem sistematicamente a ela para se manter populares, cultuam uma biografia mitológica nem sempre baseada em fatos e procuram dar a impressão de que vêm “de fora”, não obstante tenham se valido das regras “de dentro” para se eleger.

A dinâmica desse tipo é manter-se permanentemente como centro das atenções, para o bem ou para o mal. Para isso eles lançam mão de quaisquer recursos, por mais fora de esquadro que sejam ao juízo da racionalidade, pois falam aos que com eles se identificam pela via do ressentimento à deriva. Cultivam inimigos externos e internos, menosprezam o papel do Parlamento — seja composto de “300 picaretas” ou de representantes da “velha política”. São imunes aos chamamentos à razoabilidade, pois se veem como heróis cujo roteiro privilegia a fé em detrimento do conhecimento. Tudo isso os une, e não seria preciso estar atento a eles não fosse a necessidade de combatê-los por terem também inequívoca e malévola parte com o autoritarismo.