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quarta-feira, 27 de novembro de 2019

POR QUE NÃO TE CALAS, GUEDES?



Se Bolsonaro não aprendeu nada com Paulo Guedes nestes 11 meses de governo, o ministro parece ter absorvido por osmose a vocação inata do capitão para falar merda, como deixou bem claro duas vezes seguidas numa entrevista em Washington (EUA).

É fato que essa coisa de “AI-5”, que a maioria nem sabe o que é, virou uma tremenda chatice. Ninguém pode abrir a boca para dizer “AI-5” e a elite do bem entra em crise de nervos imediata. Nem é preciso defender, basta mencionar para ser excomungado. Sabendo disso, só não evita quem não quer.

Conhecido por seu pavio curto, o Posto Ipiranga de Bolsonaro mordeu a isca jogada pelo dublê de semeador do caos e sumo-pontífice da seita do inferno, que recuperou a liberdade por uma decisão do STF ainda mais estapafúrdia que as falas infelizes do ministro e agora assumiu o papel revolucionário-mor deste arremedo de república, onde ninguém parece ter colhões para pôr ordem no galinheiro e devolver esse crápula vermelho ao lugar a que ele pertence.

O primeiro troçulho veio à luz quando o ministro disse que "ninguém deve estranhar se alguém pedir o AI-5 diante de uma possível radicalização dos protestos de rua no Brasil", e o cagalhão seguinte, quando, face à redução da Selic, afirmou que "a cotação de equilíbrio do dólar tende a ir para um lugar mais alto", e que "flutuações no câmbio não são motivo de preocupação".

Diante dessas lamentáveis asnices, a cotação da moeda americana disparou — forçando o BC a intervir duas vezes para conter a alta — e o índice B3 da Bolsa de Valores despencou quase 2 pontos.

Torno a dizer que nosso presidente falastrão, admirador confesso dos tempos do "prendo e arrebento" (falo da ditadura que sucedeu ao golpe de 1964 e durou vinte e um anos), criticou os generais por prenderem demais e matarem de menos, e agora, por medo de melindrar os togados supremos que blindaram seu primogênito das investigações do "caso Queiroz", fecha-se em copas e engole calado todos os sapos a que têm direito. Lembro também que o próprio Lula, depois de ser conduzido coercitivamente para depor na PF do Aeroporto de Congonhas em 2016, ensinou que "para matar a jararaca é preciso bater na cabeça; como bateram no rabo, a jararaca continua viva como sempre esteve". 

Não se controla a hidrofobia acorrentando o cão raivoso; é preciso sacrificar o animal. Mas pensar está longe de ser nosso esporte nacional, daí o brasileiro ter tanta dificuldade para aprender as lições que vida dá. Dito isso, passo a palavra ao mestre Josias de Souza:

O medo tem múltiplos olhos. Eles são invisíveis. E enxergam coisas no subsolo da existência. Já se sabia que a família Bolsonaro cria as assombrações e depois se assusta com elas. Descobre-se agora que os fantasmas dos Bolsonaro apavoram também Paulo Guedes. Com pânico de Lula, o ministro da Economia teve um surto de inépcia. Aderiu ao radicalismo da estupidez. Numa viagem em que deveria acalmar investidores nos Estados Unidos, Guedes conseguiu inquietar observadores no Brasil.

Numa única entrevista, revelou-se alérgico ao cheiro de asfalto — "Acho uma insanidade chamar o povo pra rua pra fazer bagunça" —, sensível aos pendores repressivos de Jair Bolsonaro — "Ele só pediu o excludente de ilicitude" — e permeável a aventuras ditatoriais — "Não se assustem se alguém pedir o AI-5". Sob o impacto do ronco emitido pelas ruas em países vizinhos, atribuiu a letargia das reformas pós-Previdência ao medo do monstro: "Qualquer país democrático, quando vê o povo saindo para a rua, se pergunta se vale a pena fazer tantas reformas ao mesmo tempo."

Na sequência, o ministro elegeu Lula como culpado pela insanidade que o rodeia: "Assim que ele [Lula] chamou para a confusão, veio logo o outro lado e disse: "É, sai pra rua, vamos botar um excludente de ilicitude, vamos botar o AI-5, vamos fazer isso, vamos fazer aquilo. Que coisa boa, né? Que clima bom!".

Lulafóbico, o ministro perdeu a noção do tempo e do ridículo. Eduardo Bolsonaro, o filho Zero Três, levou o AI-5 à vitrine antes do discurso de porta de cadeia em que a divindade petista exaltou as manifestações que sacodem a América Latina. De resto, os bolsonaristas é que tomaram gosto pelas ruas. Praticam a democracia direta, na qual o meio-fio e a internet produzem maioria parlamentar na marra.

Lula e o petismo não se auto atribuem tanto poder. No ano passado, ao discursar no comício que antecedeu a sua prisão, Lula testou seus poderes ao convocar os devotos para "queimar os pneus que vocês tanto queimam, fazer as passeatas, as ocupações no campo e na cidade…" O orador foi em cana. E seus seguidores foram para casa.

No 7º Congresso do PT, encerrado no domingo passado, a ala esquerdista da legenda sugeriu a adesão ao "Fora Bolsonaro". O grupo majoritário, liderado por Lula, injetou no documento aprovado no encontro uma emenda que expõe os pés de barro do petismo. Ficou decidido que a direção do PT pode exigir a saída de Bolsonaro a qualquer momento, desde que se materialize uma "evolução das condições sociais", da "percepção pública sobre o caráter do governo" e da "correlação de forças".

Quer dizer: a insurreição das ruas não depende de Lula. O asfalto só vai roncar se Bolsonaro e Guedes fornecerem material. E a dupla parece decidida a corresponder às expectativas dos seus adversários. Há irresponsáveis na oposição. Mas nada supera a irresponsabilidade de um governo que, tendo 12 milhões de desempregados para atender, prefira transformar o país num trem-fantasma.

domingo, 3 de novembro de 2019

IMBRÓGLIOS, SALSEIROS E ASNICES DA NOVA FAMÍLIA REAL



Além de ainda não ter formado uma base de apoio parlamentar e de ter declarado guerra ao partido pelo qual se elegeu, nosso indômito presidente vem terminando amizades de longa data (mais detalhes nas postagens de ontem e de amanhã) e fulminando aliados um após o outro. Não demora e lhe restará somente o apoio dos três filhos com mandato parlamentar — o que não serve de consolo, considerando que, para blindar Zero Um, o papai presidente se sujeitou a lamber as botas de Toffoli, Alcolumbre e Gilmar; Zero Dois insiste em botar fogo no circo (sua penúltima estultice foi o vídeo do leão e as hienas); e Zero Três, que já "defendeu o fechamento do STF" (clique aqui para assistir ao vídeo e conferir em que contexto ele disse isso), agora volta à carga com a reedição do AI-5 (mais detalhes nos posts anteriores e no de amanhã).

Com desgraça pouca é bobagem, depois que a Globo veiculou (de forma açodada, se não maliciosa) uma matéria sobre sua suposta ligação com o caso Marielle, o capitão insinuou que que a emissora terá problemas para renovar sua concessão: "Teremos uma conversa em 2022", disse, para logo depois tentar recolocar o gênio na garrafa. Mas aí a mídia já havia caído de pau. No dia seguinte, Bolsonaro voltou à carga e anunciou o cancelamento de todas as assinaturas do jornal Folha de S.Paulo no âmbito do governo federal, além de fazer ameaças aos anunciantes do veículo. Quase que ao mesmo tempo, o terceiro filho concedeu a bizarra entrevista que "estarreceu o país" — continuo achando que houve muito oportunismo nessa indignação toda, mas enfim...

Apeado do sonho (por ora impossível) de assumir a embaixada do Brasil nos EUA (com as bençãos de Pato Donald Trump), Eduardo Bolsonaro assumiu a liderança do PSL na Câmara. Não foi uma boa ideia. Falta-lhe discernimento para diferenciar o que pode ser dito entre amigos, numa mesa de boteco, do que se pode falar em público. Embora não exista no governo cargo de "filho de presidente", esta administração o criou informalmente quando o monarca se cercou dos príncipes-herdeiros, e estes, deslumbrados com o poder, escudam-se na imunidade parlamentar para proferir asnices de todas as cores, cheiros e sabores.   

A declaração do Zero Três sobre o AI-5 foi repudiada por partidos de todo o espectro ideológico — inclusive do próprio PSL. Bolsonaro pai desautorizou o filho: "Não apoio. Quem quer que seja que fale em AI-5 está sonhando. Está sonhando, está sonhando. Não quero nem ver notícia nesse sentido aí. Cobrem vocês dele, ele é independente." E completou: "Qualquer palavra nossa vira um tsunami." Mas a flecha já havia sido lançada, a oportunidade de calar, perdida, e o estrago, feito.

Em entrevista ao Brasil urgente, o deputado emendou o soneto: "Eu talvez tenha sido infeliz em falar do AI-5, porque não existe qualquer possibilidade de retorno. Mas nesse cenário, o governo tem de tomar as rédeas da situação, não pode simplesmente ficar refém de grupos organizados para promover o terror." Não adiantou.

A mídia não perdoa qualquer deslize da primeira-família, e a declaração estapafúrdia do caçula foi alvo de uma série de representações no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara, e pode, pelo menos em tese, levar à cassação de seu mandato. Mas as ações apresentadas contra ele no STF, sob acusação de "incitar publicamente ato criminoso", não devem prosperar (considerando a atual composição da Corte, que conta com ministros como o que mandou soltar Anthony Garotinho e senhora um dia depois de o ex-governador lalau ser preso pela quinta vez e a madame, pela terceira, pode-se esperar qualquer coisa).

Observação: Para quem não sabe de qual togado estou falando, aqui vão algumas dicas: ele foi indicado para o STF por FHC, classificado por um colega de tribunal como "uma pessoa horrível, mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia", apelidado por Augusto Nunes de "Maritaca de Diamantino" e era presidente do TSE quando a chapa Dilma/Temer foi absolvida por "excesso de provas". Quer mais? Então vamos lá: ele tem ódio da Lava-Jato, do procurador Deltan Dallagnol e do atual ministro da Justiça e do juiz Marcelo Bretas, além de ostentar um formidável par de beiços (que pesam uns bons cinco quilos).

Questionado por jornalistas, Jair Bolsonaro negou ter feito ameaças à imprensa. Perguntado se não teme comparações com Hugo Chávez, o tiranete venezuelano que em 2007 não renovou a concessão da emissora de maior audiência no país por discordar da cobertura do canal sobre seu governo e acusá-la de ser "golpista". Disse o capitão: "Ô, ô, ô, aqui não tem ditadura, aqui não tem ditadura. Qualquer concessão tem de cumprir a lei, nada mais além disso. Nunca, em nenhum momento, partiu de mim nenhuma ameaça a qualquer órgão de imprensa no Brasil."

Observação: A decisão por uma não renovação ou aprovação de uma concessão passa inicialmente pelo Poder Executivo, mas precisa ser autorizada por dois quintos do Congresso Nacional.

Diante da possibilidade de o STF rever o entendimento sobre a prisão em segunda instância (novela cujo próximo capítulo deve ser transmitido na próxima quinta-feira), o perfil do presidente no Twitter publicou em 17 uma defesa do cumprimento da pena imediatamente após condenação em segunda instância. "Aos que questionam, sempre deixamos clara nossa posição favorável em relação à prisão em segunda instância". A mensagem foi interpretada por autoridades como uma tentativa de pressão (?!) sobre o Judiciário e o Legislativo e apagada logo depois por Zero Dois, que atua como ghostwriter  do pai, que pediu desculpas pela publicação. "Eu escrevi o tuíte sobre segunda instância sem autorização do Presidente. Me desculpem a todos! A intenção jamais foi atacar ninguém! Apenas expor o que acontece na Casa Legislativa!"

E é com coisas assim que se preocupam a imprensa, os políticos e outros desocupados. Como se o Brasil não tivesse nada mais importante para fazer.

Bom domingo a todos.

sábado, 7 de setembro de 2019

A POPULARIDADE DE UM GOVERNO IMPOPULAR



Contrariando as expectativas, mas fiel ao hábito de tomar decisões que causam "frisson" na mídia, Bolsonaro indicou com dez dias de antecedência o substituto de Raquel Dodge no comando da PGR — instituição cuja importância o capitão já comparou com a da Rainha no jogo de Xadrez.

Ainda é cedo para dizer qualquer coisa além do nome do subprocurador — Augusto Aras —, que ele não foi pinçado da "listra tríplice" do Ministério Público e que a indicação parece ter agradado mais aos petistas que à ala pró-Bolsonaro.

Segundo Josias de Souza, desconsidera-se o fato de que, para prevalecer no intrincado processo de escolha, Aras teve de assumir compromissos que tornam seu hipotético petismo um problema secundário. O que mais inquieta são as roldanas que o futuro procurador-geral traz implantadas na cintura. Aras gira conforme a conveniência, e tamanha maleabilidade política atiça os ânimos da corporação dos procuradores num instante em que atual chefe da Procuradoria-Geral enfrenta uma debandada: como eu comentei postagens atrás, o staff criminal da PGR exonerou-se de suas funções justamente porque farejou um odor de enxofre na movimentação da chefe em fim de mandato.

Produzir insensatez é a marca registrada deste governo. Tem sido assim há oito meses e assim será enquanto o capitão comandar esta nau de insensatos. Entre suas mais recentes estultices está o vai-e-vem  sobre o teto dos gastos — num dia, a revisão do teto é um imperativo matemático, na manhã seguinte, o recuo nas redes sociais. Outra é garantir que não vetaria senão o artigo que proíbe policiais de algemar presos, para logo depois admitir que as acolheria 9 das 10 sugestões apresentadas por Sérgio Moro. A partir daí, a quantidade de vetos foi aumentando na proporção direta da aproximação do vencimento do prazo. Num dia, o presidente disse que acolheria todos os dez vetos; no dia seguinte, o cesto de vetos saltou para "quase 20"; na última quinta-feira, vetou 36 artigos de 19 dispositivos da lei.

Observação: Bolsonaro diz que seguiu orientações do seu centrão, um bloco de ministros que inclui o ex-juiz da Lava-Jato. Quem quiser que acredite. Em verdade, o presidente evoluiu em cena com a orelha encostada no asfalto e os olhos grudados nas redes sociais. Notou que o passeio pelo lado obscuro da política pode sair caro. A desfaçatez tem um custo. Para que o capitão se reconcilie com seu discurso, falta tomar distância do filho 01, reacender as luzes do ex-Coaf e abandonar o papel de estorvo da PF e do Fisco.

Incoerências assim que sugerem que o presidente — que, durante a campanha, prometeu acabar com a reeleição — está mais preocupado com as urnas do que com os cofres públicos. Aclamado pelos bolsomínions, que aplaudem tudo que ele diz com a beatitude retardada dos idiotas, o capitão infla seu ego gigantesco e se vê como um César contemporâneo, a quem basta apontar o polegar para baixo para transformar adversários, desafetos e inimigos reais e imaginários em comida de leão.

A três longos anos da próxima disputa presidencial, Bolsonaro e Dória estão em plena campanha. Unidos pelas correntes do antipetismo explícito em 2018, eles assim permaneceram até algum tempo atrás, quando sinais de distanciamento assomaram no horizonte, sobretudo pela dificuldade de o tucano se colocar como candidato sem antagonizar o atual presidente. Em junho, fizeram lado a lado uma demonstração de flexão de braço durante evento na zona sul de São Paulo; dias atrás, trocaram farpas pelas redes sociais.

Bolsonaro chamou Doria de "ejaculação precoce"; Doria respondeu que foi criticado da mesma maneira pelo presidiário Lula quando derrotou Haddad na disputa pela prefeitura de Sampa em 2016. A primeira-dama de São Paulo, Bia Doria, disse que o capitão usa "expressões chulas, que ferem e desrespeitam a família brasileira e a importância do cargo que ocupa". Na mesma linha seguiu o ex-pesselista recém-convertido a tucano Alexandre Frota: O presidente é a broxada do ano e quer falar de ejaculação precoce? Ele fantasia muito, tipo masturbação política”, disse o deputado à Folha.

Bolsonaro, com ciúmes da popularidade de Sérgio Moro — a quem ofereceu o ministério da Justiça para agregar credibilidade à sua promessa de combater implacavelmente a corrupção e os corruptos —, passou a ver no ex-juiz da Lava-Jato uma ameaça a sua reeleição. Moro, por sua vez, vive um inusitado paradoxo: popularíssimo na sociedade, tornou-se impopular no gabinete do presidente da República, cujo prestígio declina. Segundo o Datafolha, a taxa de aprovação do ministro é 25 pontos maior do que a do chefe.

Governos em geral costumam ter um excesso de cabeças e carência de miolos; o de Bolsonaro em particular sofre do mesmo mal, só que opera com uma cabeça só. O capitão é o tipo de político que segue a teoria da palmeira única, que não aceita a ideia de dividir o gramado com outra palmeira, sobretudo se ela tem quase o dobro do seu prestígio. E da inveja para o medo é um pulinho que pode transformar neurose em realidade. Até outro dia, o sonho de Moro era fazer um bom trabalho no ministério e ganhar uma poltrona no STF. Escanteado pelo chefe, passa a enxergar na política sua melhor alternativa.

A mesma pesquisa que exibe a invejável popularidade do ministro da Justiça dá conta de que outros ministros de Estado suplantam o em popularidade. Paulo Guedes cravou 38% de aprovação, e Tarcísio de Freitas, 36%. No momento, além de ser um sub-Moro, Bolsonaro está empatado com o ministro das queimadas, Ricardo Salles (30%), e com o ministro do marxismo cultural, Abraham Weintraub (29%). Talvez fizesse um bem a si mesmo se esquecesse 2022 e se concentrasse no essencial, que é a recuperação da economia.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

O GOVERNO E O KÖNIG DER SCHEIßE




O supremo laxante ataca outra vez. Na tarde de ontem, o paladino de araque soltou Júlio Cesar Pinto de Andrade e Paulo Cesar Haenel Pereira Barreto, que estavam presos por determinação do juiz Marcelo Bretas, responsável pelos processos da Lava-Jato no Rio de Janeiro. Os pedidos dos dois não tinham terminado de tramitar nas instâncias inferiores, situação em que é de praxe o STF rejeitá-los sem sequer analisar seus argumentos. Infelizmente, as leis são criadas, no Brasil, para não funcionar ou  para favorecer criminosos com cacife para bancar advogados estrelados e, mediante a interposição de toda sorte de recursos, embargos e chicanas nas quatro instâncias do Judiciário, empurrar para as calendas o julgamento final dos processos e o consequente cumprimento da pena. Enquanto a Lava-Jato contabilizou 244 condenações contra 159 acusados, o STF levou 3 anos, 2 meses e 26 dias para condenar Nelson Meurero único político com foro privilegiado condenado pelo Supremo até agora —, cujo nome figurava na primeira "Lista de Janot", entregue pelo ex-procurador em março de 2015. É ou não é escarnecer dos contribuintes, que são submetidos a impostos escorchantes para bancar essa e outras afrontas supremas? Quosque tandem, Catilina?
 
Dito isso, segue o baile:

Desde a proclamação da independência, o Brasil já teve sete constituições (ou oito, já que muitos consideram a Emenda nº 1, outorgada pela junta militar em 1969, como a “Constituição de 1969”). A mais atual, promulgada em e de outubro de 1988, tem 250 artigos, e não só é o obelisco da prolixidade, mas também uma colcha de retalhos — na medida em que foi remendada mais de uma centena de vezes. A título de comparação, a constituição norte-americana, promulgada em 1787, tem apenas 7 artigos e recebeu 27 emendas nos últimos 220 anos.

A reforma previdenciária se tornou necessária quase no mesmo instante em que a Constituição Cidadã distribuiu direitos a rodo, mas sem apontar qual seria a origem dos recursos que os bancariam. Aliás, a palavra “Direito” é mencionada 76 vezes na nossa Carta Magna, enquanto "Dever" surge apenas 4 oportunidades e "Produtividade” e “Eficiência” aparecem duas e uma vez, respectivamente, o que nos leva à seguinte pergunta: O que esperar de um país que tem 76 direitos, quatro deveres, duas produtividades e uma eficiência? No máximo, uma política pública de produção de leis, regras e regulamentos que quase nunca guardam relação com o mundo real.

Voltando à PEC da Previdência, há duas décadas que se vem tentando, sem êxito, mexer nesse vespeiro. Diante da insustentabilidade da situação, coube a Bolsonaro, muito a contragosto, pôr a questão como um dos focos principais de seu governo e nomear Paulo Guedes para auxiliá-lo.

Graças ao Posto Ipiranga e a Rodrigo Maia, a proposta foi aprovada em segundo turno na Câmara e, uma vez chancelada pelo Senado, deverá gerar uma economia de quase 1 trilhão de reais nos próximos dez anos, liberando dinheiro para investimentos em outras áreas, como saúde e educação. Trata-se da maior vitória política do governo até o momento, apesar de o presidente ter feito o possível para embolar o meio de campo. É certo que o projeto foi bombardeado pela oposição, mas é igualmente certo que Bolsonaro foi o maior responsável por atrasos e outros percalços — isso sem mencionar o amadorismo e o egocêntrico irresponsável das hostes bolsonaristas no Congresso.

O conjunto de medidas anticrime e anticorrupção, outra promessa de campanha do capitão, arrasta-se a duras penas, não só pela falta de articulação do Executivo com o Legislativo, mas principalmente porque muitos parlamentares veem no ex-juiz da Lava-Jato o maior pesadelo dos políticos corruptos. E com efeito: não fosse sua atuação à frente da operação em Curitiba, o picareta dos picaretas estaria livre, leve, solto e muito provavelmente aboletado na poltrona do gabinete mais cobiçado do Palácio do Planalto. Mas o fato é que o projeto do ministro Sérgio Moro está paralisado e corre o risco de sair da Câmara bem mais magro do que entrou — já foram retiradas do texto a parte que toca à prisão em segunda instância e a que implanta o plea bargain (instrumento que permite ao acusado se declarar culpado e se livrar do processo).

A exemplo de como atuou durante a tramitação da mexida previdenciária na Câmara, Bolsonaro mais atrapalha do que ajuda o avanço da proposta de medidas anticrime. Não à toa, FHC, Marco Aurélio Mello, Tasso Jereissati, Simone Tebet e até Alexandre Frota já lhe recomendaram, cada qual a sua maneira e com suas próprias palavras, que calasse a boca. E com razão: somente nos 100 primeiros dias de governo o capitão colecionou uma miríade de episódios de desgaste político, dentre os quais vale citar a investigação sobre milícias envolvendo o gabinete de zero um na Alerj, as candidaturas de laranjas de seu partido, os entrechoques entre militares e a ala do governo sob influência do escritor Olavo de Carvalho, a crise no MEC, a troca de farpas com o Congresso e a dificuldade no encaminhamento da reforma da Previdência.

Como se vê, deixar-se fotografar como um mulambo em cerimônia no Alvorada, com camisa do Palmeiras sob o paletó e chinelos deixando aparecer os dedos dos pés, seria o de menos. E o mesmo vale para o compartilhamento de um vídeo escatológico e obsceno, durante o Carnaval, a pretexto de homenagear a moralidade. E como se nada isso bastasse, o ministro da Economia foi massacrado por uma caterva de parlamentares de esquerda — carnificina que se repetiu quando o ministro da Justiça prestou esclarecimentos aos deputados sobre os vazamentos tendenciosos do material criminoso obtido pelo Interpret de Verdevaldo das Couves, o impoluto.

Dos 5 filhos que Bolsonaro teve em 3 casamentos, os três mais velhos palpitam alegremente no governo e agem como se o clã fosse uma espécie de Família Real. Essa insólita relação familiar tem provocado uma série de intrigas intra murus — especialmente entre os militares — e desestabilizado uma gestão que começou mal e que já esteve sob séria ameaça de ser abortada pelo menos uma vez. Sem cargos no governo, mas agindo como membros de uma monarquia, a prole presidencial se dedica a fabricar crises.

Zero Um é senador, mas seus rolos com a Justiça remontam ao mandato de deputado federal, devido a suspeitas de contratação de funcionários-fantasma e retenção de parte dos salários dos que compareciam de corpo presente para dar expediente no gabinete de Flávio na Alerj, gerenciado por Fabrício Queiroz, ex-factótum da família Bolsonaro que domina a arte do desaparecimento com desenvoltura capaz de deixar David Copperfield, Chris Angel e outros mestres do ilusionismo roxos de inveja. Graças ao papai presidente, as investigações foram suspensas pelo togado supremo e presidente de todos os togados supremos, de quem, de uma hora para outra, Jair Bolsonaro se tornou amigo de fé, irmão e camarada (volto a esse assunto mais adiante).

Quem quiser se esconder do Zero Dois pode dar plantão na porta de seu gabinete na Câmara Municipal do Rio. Em Brasília, onde passa a maior parte do tempo, se empenha em fazer jus ao epíteto de pitbull presidencial criando polêmicas e semeando a cizânia no entorno palaciano. Foi ele o responsável pela demissão de Gustavo Bebianno, em fevereiro, e do general Carlos Alberto Santos Cruz, em junho, apenas para mencionar dois de seus feitos mais emblemáticos. Genioso, beligerante e adepto a teorias conspiratórias, já arreganhou os dentes para o general Mourão e atacou mais de uma vez o general Augusto Heleno. Sua relação com o pai chega a ser obsessiva. Em 2000, aos 17 anos, desbancou a mãe e se tornou o vereador mais jovem do Rio, mas sentiu-se usado quando descobriu que o pai apoiou sua candidatura para evitar a reeleição da ex-esposa. Pai e filho ficaram sem se falar por anos e, para reconquistar o rebento, o primeiro passou a ser mais tolerante com os caprichos do segundo.

Observação: Carluxo jamais simpatizou com Bebianno e sempre teve ciúmes de sua influência sobre o pai. As rusgas começaram durante a campanha, quando o factótum tinha carta branca para tomar as decisões mais delicadas e o rebento, que tinha um palpite a dar sobre tudo, se via limitado a cuidar das redes sociais da família. Vencida a eleição, o poder do “cão de guarda” se sobrepôs ao do “pitbull”: o primeiro assumiu a Secretaria-Geral da Presidência da República e o segundo, que aspirava ao comando da Secretaria de Comunicação, ficou sem cargo no governo.

Entre os 22 ministros de Estado, nenhum compartilhou mais a intimidade do presidente do que Bebianno, que atuou como faz-tudo durante a campanha e, antes disso, como advogado, ganhou a confiança do então deputado ao se oferecer para defendê-lo de graça de uma acusação de homofobia. Pego no contrapé, o ministro disse não entender a violência com que vinha sendo atacado e a facilidade com que foi abandonado. A certa altura das gravações que vieram a público, disse Bebianno a Bolsonaro: O senhor está bem envenenado. Mais adiante, ele revelaria o nome do envenenador: “O senhor Carlos Bolsonaro fez macumba psicológica na cabeça do pai”.

Zero Três é deputado federal. Até onde se sabe, não tem contas a acertar com a Justiça, como o irmão mais velho, nem é tão polêmico quanto o do meio, mas é defensor ferrenho do porte e posse de armas de fogo e constantemente lembrado por um comentário que fez em julho do ano passado, durante uma palestra em Cascavel (PR): perguntado sobre a hipótese de uma intervenção militar no caso de o STF impedir que o então candidato Jair Bolsonaro, se eleito, assumisse a presidência, Eduardo disse que aí já se estaria caminhando para um regime de exceção, e que para fechar o Supremo não era preciso mandar sequer um jipe, bastava enviar um soldado e um cabo. Tirada do contexto, sua assume ares de provação, e como tal viralizou nas redes sociais a uma semana do segundo turno das eleições.

Dono de um ego grande como o dos irmãos, o caçula dos três se tem na conta de "assessor presidencial especialíssimo" e já disse que pretende concorrer à Presidência, caso o pai não dispute a reeleição em 2022. Por enquanto, serve-lhe o cargo de embaixador nos EUA, para o qual é tão despreparado quanto o pai para presidir esta banânia: ao defender sua nomeação, "o garoto", como é tratado pelo presidente, disse ser qualificado porque fala inglês e espanhol, é amigo da família presidencial norte-americana e, dentre outros méritos, fritou hambúrgueres no estado do Maine.

Até onde se sabe, a experiência como como chapeiro de lanchonete não faz parte dos requisitos exigidos de um candidato a embaixador, sem mencionar que a rede Popeyes, onde Zero Três diz ter trabalhado, não serve hambúrgueres, mas frango frito. Demais disso, a consultoria legislativa do Senado elaborou parecer — respaldado na Súmula Vinculante nº 13 do STF — segundo o qual a indicação, se realmente for formalizada, configura nepotismo. Bolsonaro nega, talvez porque "nepotismo" vem de "nipote", que, numa tradução direta do italiano, significa neto ou sobrinho, e "o garoto é filho, talkey? ".

Gozações à parte, o Supremo já se manifestou com a interpretação de que, para agentes políticos, a súmula não se aplica. No entendimento dos consultores legislativos, porém, embaixadores não são agentes políticos. Discute-se agora se a inclusão de representantes diplomáticos nessa categoria é rejeitada pelo conjunto de leis e não encontra eco no histórico do STF. 

Se a moda pega, Zero Um — que ostenta no currículo habilidade inigualável em fazer investigação virar pizza e é um dos poucos pizzaiolos habilitados a preparar a incomum pizza de laranja — pode pleitear o cargo de embaixador do Brasil na Itália. Quanto a Zero Dois... bem, ainda não se sabe qual embaixada o menino prodígio pretende chamar de sua, mas fontes do Planalto afirmam que ele apresentará sua reivindicação assim que aprender a escrever em português no Twitter. 

Falta presidente à Presidência. Falta presidente para dar vida à figura do presidente e pôr ordem no governo, na bancada do Congresso, na família, enfim... Ser carismático, só, não basta. Falando em carisma, leia a seguir o que Dora Kramer escreveu em sua coluna na edição de Veja desta semana, que, juntamente com a de J.R. Guzzo, é tudo que ainda vale a pena ler depois que a revista juntou a Verdevaldo na tentativa de assassinar a reputação de Moro e procuradores da Lava-Jato e soltar o repulsivo parteiro do Brasil Maravilha, aquele que se diz a alma viva mais honesta da galáxia, enviado pela Divina Providência para acabar com a fome, presentear a imensidão de desvalidos com três refeições por dia e multiplicar a fortuna dos milionários:

No Brasil é praxe considerar o carisma um ativo no capital político de candidatos a cargos majoritários. É visto pelo eleitorado como um bom atributo, embora não imprescindível, conforme atestaram as duas vitórias de Fernando Henrique em primeiro turno. Contariam como regra as derrotas de José Serra e Geraldo Alckmin para a Presidência caso não tivessem sido eleitos governadores em São Paulo e perdido a disputa nacional para Dilma Rousseff, nota zero no quesito magnetismo pessoal. 

É relativo, portanto, o valor do fascínio, algo inexplicável exercido sobre o eleitorado, embora tal fator tenha peso nas disputas eleitorais. Disso dão notícia as licenças obtidas por Fernando Collor, Luiz Inácio da Silva e Jair Bolsonaro para dar expediente no Palácio do Planalto, que caracterizam-se pela vulgaridade na linguagem, nos excessos cometidos em nome da informalidade de modo a transparecer autenticidade, o que, ao mesmo tempo, lhes confere uma autoconfiança inesgotável. Do ego hipertrofiado emerge a intolerância ao contraditório e se estabelece a dinâmica da atuação via confronto permanente. No universo deles a luta é uma constante, a razão de ser. Costumam cultivar mitologia em torno de si, sustentados numa biografia que nem sempre conta a verdade completa. Alimentam fantasias persecutórias de modo a ativar desejos de desmontes de alegadas conspirações. Para isso recorrem a instrumentos de identificação, ressentimento e distração.

No primeiro momento dizem o que a maioria quer ouvir. No segundo, exacerbam sentimentos e finalmente ocupam todos os espaços com um falatório sem importância, embora atrativo para os opositores, a fim de distrair o público, que, assim, estaria afastado do debate sobre os problemas concretos, imobilizado quanto a cobranças de governança eficaz. Todos eles manifestam horror à imprensa livre, ao mesmo tempo que recorrem sistematicamente a ela para se manter populares, cultuam uma biografia mitológica nem sempre baseada em fatos e procuram dar a impressão de que vêm “de fora”, não obstante tenham se valido das regras “de dentro” para se eleger.

A dinâmica desse tipo é manter-se permanentemente como centro das atenções, para o bem ou para o mal. Para isso eles lançam mão de quaisquer recursos, por mais fora de esquadro que sejam ao juízo da racionalidade, pois falam aos que com eles se identificam pela via do ressentimento à deriva. Cultivam inimigos externos e internos, menosprezam o papel do Parlamento — seja composto de “300 picaretas” ou de representantes da “velha política”. São imunes aos chamamentos à razoabilidade, pois se veem como heróis cujo roteiro privilegia a fé em detrimento do conhecimento. Tudo isso os une, e não seria preciso estar atento a eles não fosse a necessidade de combatê-los por terem também inequívoca e malévola parte com o autoritarismo.