A prisão após condenação em segunda instância reúne
defensores e detratores, e cada lado tem seus argumentos, uns bons, outros nem
tanto. Mas o fato é que essa discussão só ganhou vulto porque afeta diretamente
o ex-presidente Lula — que, nunca é demais lembrar, responde a oito
processos, já foi condenado a 12 anos e 1 mês de prisão num deles e vem cumprindo
a pena desde abril. Duas outras ações em trâmite perante a 13ª Vara Federal do
Paraná, em Curitiba, estão aguardando sentença. Na que trata da cobertura de SBC e do terreno onde seria construída a futura
sede do Instituto Lula, os autos
estão conclusos desde antes das eleições; na que versa sobre o folclórico sítio em Atibaia, o prazo para
alegações finais termina no próximo dia 7, após o que a juíza substituta Gabriela Hardt, que assumiu
provisoriamente os casos da Lava-Jato
com a exoneração de Sérgio Moro, pode
sentenciar o molusco a qualquer momento.
Capitaneada pelo advogado estrelado Cristiano Zanin — genro
do também advogado Roberto Teixeira,
compadre de Lula e igualmente enrolado
na Justiça penal —, a defesa do ex-presidente bombardeou implacavelmente todas as instâncias do Judiciário com mais de uma centena
de apelos, que vão dos recursos ordinário,
especial e extraordinário a pedidos de habeas corpus e chicanas de todo tipo (isso sem mencionar a batalha travada na esfera da Justiça
Eleitoral, primeiro para postergar e depois para reverter a decisão do TSE de cassar a candidatura do petista,
à luz do disposto pela Lei da Ficha-Limpa). Diante disso, a conclusão a que se chega é que, na visão dos nobres causídicos, o STF
existe apenas para apreciar seus recursos. A propósito, diz um velho ditado que quem dá asas a cobra assume o risco de ela acreditar que pode voar... e sair voando. Para bom entendedor...
Um dos pilares da segurança jurídica é a jurisprudência
assentada pelas cortes superiores, que não pode ser questionada a todo instante,
muito menos atropelada pela vontade individual de algum magistrado, sob pena de
transformar o sistema judiciário do País numa loteria. No limite, quando
envereda pelo caminho da imprevisibilidade, esse sistema falha em sua tarefa de
alcançar a pacificação social e ameaça até mesmo a manutenção do Estado
Democrático de Direito.
Na semana passada, como todos bem se lembram, o ministro Marco Aurélio decidiu suspender
monocraticamente a possibilidade do início da execução penal após condenação em
segunda instância. Com sua estapafúrdia liminar, o magistrado afrontou o princípio da segurança
jurídica e deixou o país intranquilo diante da perspectiva de um ministro
supremo, com uma única canetada, soltar quase 170 mil presos, dentre os quais o
detento mais famoso do Brasil, o que certamente causaria tumulto e muita
confusão, sobretudo às vésperas da posse do presidente eleito Jair Bolsonaro.
A prisão após a
condenação em primeira instância vigeu no Brasil de 1941 até 1973, quando
então a ditadura militar pressionou o Congresso a aprovar a Lei nº 5.941, (que ficou conhecida como
Lei Fleury), garantindo a réus
primários e com bons antecedentes o direito de, mediante fiança, responder ao
processo em liberdade até a decisão da segunda instância. O objetivo dessa
maracutaia era favorecer Sérgio Paranhos
Fleury, delegado do DOPS, notório
torturador e exterminador de militantes comunistas, mas o resultado foi o cumprimento da
pena após a confirmação da sentença condenatória em segunda instância tornar-se regra geral.
Em 1988, a “Constituição
Cidadã” ampliou esse benefício, estabelecendo a presunção de inocência até o julgamento do último recurso cabível,
ou seja, após o trânsito em julgado da sentença da sentença condenatória. A
partir daí, a tradicional morosidade do Judiciário,
combinada com o instituto da prescrição
— perda do direito de ação por não ter sido exercido dentro do prazo previsto
em lei —, favoreceu criminosos ricos, poderosos, bem posicionados no mundo
político e assistidos por advogados estrelados a iniciar o cumprimento da pena
“no dia de São Nunca”, dada a
quantidade quase ilimitada de recursos, apelos e chicanas que podem ser
impetradas nas quatro instâncias do Judiciário tupiniquim.
No STJ, porém, cristalizou-se o entendimento de que a prisão após condenação em segunda instância não ofende a presunção de inocência, e que, para apelar, o apenado deve iniciar o cumprimento provisório da pena (súmula 09). Isso faz muito sentido, sobretudo porque o reexame de matéria fática (provas) só é possível até a segunda instância; o que se discute no STJ é uma possível interpretação da legislação de maneira divergente dos demais tribunais ou ofensa à legislação federal e a tratados internacionais, e no STF, eventuais ofensas ao texto constitucional.
No STJ, porém, cristalizou-se o entendimento de que a prisão após condenação em segunda instância não ofende a presunção de inocência, e que, para apelar, o apenado deve iniciar o cumprimento provisório da pena (súmula 09). Isso faz muito sentido, sobretudo porque o reexame de matéria fática (provas) só é possível até a segunda instância; o que se discute no STJ é uma possível interpretação da legislação de maneira divergente dos demais tribunais ou ofensa à legislação federal e a tratados internacionais, e no STF, eventuais ofensas ao texto constitucional.
E assim foi até 2009, quando o STF mudou novamente as regras ao estabelecer que condenados
em segunda instância permanecessem em liberdade até o trânsito em julgado da
sentença condenatória. Coincidentemente ou não, isso aconteceu durante o processo do mensalão, que foi
instaurado no final de 2007 e começou a ser julgado em 2012 — a fase de
julgamento dos recursos só terminou em 2014 —, e quem liderou essa mudança no
entendimento do Supremo foi o então
ministro Eros Grau, nomeado pelo
ex-presidente Lula. Provocado pela
imprensa a comentar o assunto no início deste ano, Grau disse o seguinte: “Agora,
neste exato momento, eu até fico pensando se não seria bom prender já na
primeira instância esses bandidos que andam por aí”.
Mais adiante, o STF
retomou o entendimento anterior — de que o artigo
283 do Código de Processo Penal não impede o início da execução da pena
após condenação em segunda instância — e o vem mantendo a dura penas (se me desculpam o trocadilho). No entanto, depois que a Lava-Jato passou
a expor as entranhas pútridas da política e dos políticos tupiniquins — e
sobretudo quando a possibilidade de Lula
ser preso tornou-se real —, a corrente garantista da Corte (Lewandowski, Toffoli, Marco Aurélio, Celso de Mello e o vira-casaca Gilmar) vem defendendo o status quo ante, o que representa séria
ameaça à Lava-Jato e ao combate à
corrupção em geral.
Quando a ADC do PCdoB— cujo julgamento parece ser um caso
de vida ou morte para seu relator, o ministro Marco Aurélio — for levada a plenário, em abril do ano que vem, a
ministra Rosa Weber tende a ser o
fiel da balança. Pessoalmente, ela se diz contrária ao cumprimento antecipado
da pena, mas, em suas decisões individuais, tem seguido o entendimento firmado
pela maioria (por 6 votos a 5), em respeito ao princípio da colegialidade. Vale
lembrar que o ministro Gilmar Mendes, a pretexto de uma delirante cruzada
contra as prisões preventivas alongadas (sobretudo no âmbito da Lava-Jato), passou de antipetista
ferrenho e defensor incondicional do cumprimento da pena após a
condenação em segunda instância a laxante togado de quatro costados, como se
pode inferir dos habeas corpus que vem agasalhando às baciadas, e de sua tonitruante
cantilena louvando a proposta de Toffoli,
que, em linhas gerais, defende a prisão dos condenados somente após a decisão de terceira instância.
O resto fica para a próxima postagem.