sábado, 29 de dezembro de 2018

AINDA SOBRE INIMIGOS DO POVO E PRISÃO EM 2ª INSTÂNCIA


Quando a Lava-Jato revelou o mar de lama envolvendo políticos, comandantes de estatais e a alta cúpula do empresariado tupiniquim, o STF voltou a admitir o início do cumprimento da pena após a condenação em segunda instância (detalhes na postagem anterior). Com isso, muita gente graúda — da cadeia ou prestes a ser mandado para lá —, passou a entregar gente ainda mais graúda em troca de punições mais brandas. Não obstante, quando a força-tarefa começou a bafejar o cangote de Lula, a Corte passou a ser pressionada para restabelecer o entendimento anterior, que, como vimos, vigeu no Brasil apenas e 7 dos últimos 77 anos.

A “plausibilidade” de reforma da sentença de Lula é uma falácia, mas tem servido de argumento para ministros como Gilmar Mendes (que até não muito tempo atrás era defensor ferrenho da prisão após condenação em segunda instância), LewandowskiToffoliCelso de Mello e Marco Aurélio — este última, nunca é demais lembrar, se superou na semana passada, ao protagonizar uma encenação revista e atualizada da palhaçada encenada em julho pelo desembargador “cumpanhêro” Rogério Favreto, do TRF-4 (detalhes nesta postagem).

Lula foi condenado a 9 anos e meio de prisão, teve a pena aumentada para 12 anos e 1 mês pelo TRF-4 e está preso desde abril — outras condenações estão por vir, já que ele é réu em 8 processos, dois dos quais sob a pena da juíza substituta Gabriela Hardt, que assumiu os processos da Lava-Jato na 13ª Vara Federal do Paraná depois que Sérgio Moro aceitou o convite do presidente eleito para chefiar a pasta da Justiça e Segurança Pública no próximo governo. Do ponto de vista jurídico, sua prisão não constituiu um fato novo que justifique a revisão da jurisprudência do STF, mas tem propiciado uma indesejável reedição da lei Fleury para soltar o grão-petralha e evitar que outros “figurões” — como Michel Temer e atuais ministros e parlamentares, hoje cobertos pelo guarda-chuva do foro privilegiado, mas que estarão na chuva quando terminarem seus mandatos — acabem na prisão.

Quando julgou pedido de habeas corpus em favor de Lula, logo após sua prisão, o Supremo manteve o entendimento cristalizado em 2016 — que autoriza o cumprimento antecipado da pena após condenação em segunda instância. Mas Marco Aurélio e Lewandowski, que foram votos vencidos, têm se empenhado desde então em forçar uma revisão. No biênio em que presidiu a Corte, Cármen Lúcia se recusou a “apequenar o Supremo” reabrindo a discussão sobre um tema que foi revisitado quatro vezes no passado recente (mais detalhes na postagem de amanhã) —, e por isso foi alvo de grosserias de Marco Aurélio, o impoluto. E o mesmo aconteceu com Rosa Weber, que também rejeitou a tese que favoreceria Lula. Célebre pelos pronunciamentos, digamos, confusos, a ministra se redimiu ao dizer, litteris: “Compreendido o tribunal como instituição, a simples mudança de composição não constitui fator suficiente para mudar jurisprudência”.

Na liminar que assinou na semana passada — e que poderia ter produzido consequências desastrosas se não tivesse sido cassada pelo presidente do Supremo —, Marco Aurélio, o incrível, escreveu que a segurança jurídica “pressupõe a supremacia não de maioria eventual (…), mas da Constituição”, e aproveitou o embalo para destratar seus pares, acusando-os de desrespeitar a ordem jurídico-constitucional: “Que cada qual faça a sua parte, com desassombro, com pureza d’alma, segundo ciência e consciência possuídas”. E acrescentou, quase como um deboche:Tempos estranhos os vivenciados nesta sofrida República!

O início do cumprimento da pena após condenação em segunda instância é uma questão que divide os juristas, mas vale lembrar nossa Justiça tem quatro instâncias e um vasto cardápio de apelos, recursos, embargos e chicanas protelatórias possíveis. Nesse cenário, vincular o cumprimento da pena ao trânsito em julgado da condenação — ou, na melhor das hipóteses, à decisão da terceira instância (STJ), como sugere o ministro Toffoli — seria ferir de morte a Lava-Jato, cujo sucesso se deve em grande medida às delações premiadas, que por sua vez dependem de conduções coercitivas, prisões preventivas e ameaça real de cumprimento da pena — sem o que os bandidos de colarinho branco dificilmente entregariam a rapadura. 

A possibilidade de Lula ser preso instaurou uma cizânia, entre os ministros Supremos, que se acentuou ainda mais depois que a prisão se tornou um fato consumado. A partir de então, os favoráveis ao “Lula-Livre” vêm manobrando em duas frentes: a primeira é um habeas corpus que estava sendo apreciado pela segunda turma e foi suspenso por um pedido de vista de Gilmar Mendes, o divino, quando dois votos contrários sugeriam que o pleito da defesa seria rejeitado, e a segunda remete às famigeradas ADCs, que estão sob relatoria de Marco Aurélio, o salvador, e parecem ter se tornado uma questão de vida ou morte para esse magistrado.

A Constituição não proíbe a execução provisória da pena após condenação em segunda instância, embora explicite que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” — o tão falado “princípio da presunção de inocência”, do qual se infere que o onus probandi é de quem acusa. Portanto, cabe ao Estado provar a culpa do acusado, o que significa produzir provas de que o crime de fato ocorreu e de que foi ele (o acusado) quem o cometeu. À defesa compete apenas provar teses defensivas — como causas excludentes da ilicitude (caso de legítima defesa, por exemplo) e/ou da culpabilidade (coação moral irresistível, também por exemplo), além de extintiva da punibilidade (caso da prescrição, idem) e eventuais álibis. 

É importante salientar que o legislador não pode transferir o ônus da prova o réu, sob pena de violar o princípio da presunção de inocência. Em outras palavras, isso significa que a pessoa investigada ou processada não pode ser tratada juridicamente como culpada antes do trânsito em julgado da sentença que reconheça sua culpa. Mas a questão é que a Constituição não deixa claro o que significa “não ser juridicamente tratado como culpado” — como veremos em detalhes no próximo post.