Fechei o post anterior dizendo que a
Constituição não deixa claro o que
é “não ser juridicamente tratado como
culpado”, e inicio este acrescentando que "a lei penal pode determinar que alguns efeitos jurídicos
ocorram já durante o processo, desde que não afrontem a presunção de inocência". Vejamos isso melhor.
Conforme o entendimento emanado do STF nos precedentes que voltaram a admitir a execução provisória da pena após condenação em segunda instância, em 2016, as consequências jurídico-penais são gradualmente deflagradas no decorrer da persecução penal à medida que a culpa vai sendo comprovada, restando a plenitude dos efeitos penais condenatórios reservada para após o trânsito em julgado. Vejamos isso melhor.
Conforme o entendimento emanado do STF nos precedentes que voltaram a admitir a execução provisória da pena após condenação em segunda instância, em 2016, as consequências jurídico-penais são gradualmente deflagradas no decorrer da persecução penal à medida que a culpa vai sendo comprovada, restando a plenitude dos efeitos penais condenatórios reservada para após o trânsito em julgado. Vejamos isso melhor.
Para que alguém seja investigado, basta a simples suspeita
de que tenha cometido um crime, mas, para ser denunciado, é preciso que o órgão
de acusação apresente provas da
materialidade — ou seja, de que o crime ocorreu — e indícios de autoria — isto é, de
que foi realmente o acusado que o cometeu. Para que o indiciado se torne réu, o
juiz precisa reconhecer expressamente a existência dos pressupostos anteriores,
e para que haja condenação, que o magistrado entenda que a acusação comprovou a culpa do réu para
além de qualquer dúvida razoável.
Qualquer das partes que se sentir desfavorecida pode recorrer
da decisão, e o julgamento do(s) recurso(s) na segunda instância encerra a
discussão sobre a prova da materialidade
e da autoria. Se, por exemplo, o tribunal entender que o delito ocorreu e que o réu foi realmente o autor,
esse fato ganha reconhecimento jurídico pleno. Às instâncias superiores compete
somente analisar questões acerca das regras aplicáveis — a legislação federal,
no caso do STJ, e a
Constituição, no do STF —,
mas não lhes cabe reverter a conclusão do juízo a quo quanto à matéria
fática (provas). Em outras palavras, não é mais possível negar a
conduta criminosa e sua autoria se o juízo de segunda instância as tiver
reconhecido, e é por isso que o início do cumprimento provisório da pena é
admissível, sem prejuízo dos recursos pendentes de apreciação pelas cortes
superiores. Segundo o art. 637 do Código de Processo Penal, esses recursos “não
têm efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do
traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da
sentença”. Como bem assinalou o ministro Jorge Mussi, do STJ, na
decisão em que rejeitou o HC impetrado
pela defesa de Lula, “o
estado de inocência vai se esvaindo à medida que a condenação vai se
confirmando”.
A cantilena do “nós contra eles” entoada por Lula, pelo PT e pelos sectários da seita do inferno se alastrou como fogo no
palheiro, atingindo, inclusive, o próprio Supremo, onde os ministros se dividiram em “punitivistas e garantistas”.
E a possibilidade de revisão da jurisprudência definida em 2016 pela apertada
maioria de 6 votos a 5 pode não se sustentar quando for novamente posta à
prova, em abril do ano que vem. Tudo inicia que a ministra Rosa Weber será, mais uma vez, o fiel da balança — ela é contrária
à prisão em segunda instância, mas tem respeitado o entendimento colegiado,
tanto no plenário quanto na primeira turma e em suas (raras) decisões
monocráticas.
Impõe-se salientar que a judicatura não pode ser exercida de
forma esquizofrênica; há que prezar pela unidade, coerência e previsibilidade
das decisões, sem o que a população e os órgãos de base não saberão com
razoável certeza qual o direito em vigor nesta Banânia. O Supremo voltou a admitir a prisão
em segunda instância no julgamento do HC
126.292, em 17 de fevereiro de 2016 (por 7 votos a 4), e manteve essa
posição ao decidir os embargos de declaração do julgado, afirmando que seu
entendimento não esvazia o art. 283 do Código de Processo Penal (CPP), segundo o qual “ninguém
poderá ser preso senão (…) em decorrência de sentença condenatória transitada
em julgado”. Isso porque, como vimos, em havendo recurso, mas não o
efeito suspensivo (art. 637), é
possível a execução provisória da pena. Também em 2016, mas em outubro e
por 6 votos a 5 (Toffoli mudou
seu posicionamento depois que a Lava-Jato começou
a bafejar no cangote de Lula),
o plenário indeferiu liminar nas ADCs
43 e 44, reafirmando o entendimento retrocitado. No mês seguinte, ao julgar
o RE com Agravo 964.246,
analisado sob a sistemática de
Repercussão Geral — ou seja, de precedente vinculante —, o
plenário reiterou, também por 6 votos a 5, a admissão da execução provisória da
pena após condenação em segunda instância.
Considerando que esse tema debatido em plenário nada menos
que quatro vezes ao longo de uns poucos anos — uma delas em sede de repercussão
geral e duas em liminar de controle concentrado de constitucionalidade —, e que
a composição da Corte não se alterou desde então, tornar a discuti-lo seria “apequenar o Supremo”, como salientou
várias vezes a ministra Cármen
Lúcia, que se recusou a tornar a pautá-lo durante o biênio em que presidiu o
tribunal. Demais disso, uma guinada brusca não só seria um indesejável
retrocesso, mas também fragilizaria de modo contundente e até irresponsável a
coerência e previsibilidade do direito brasileiro e a credibilidade do Supremo.
Não se defende aqui a perenidade da jurisprudência, até
porque uma postura por demais engessada pode comprometer a eficácia da lei e provocar ruptura entre a legislação e a realidade social.
No entanto, sem a observância de certos requisitos, como a perda de congruência social — quando uma posição
anterior colide com os valores sociais — ou da consistência sistêmica — quando a legislação que fundou a decisão é revogada —, a superação de precedentes seria irracional e leviana. Mas é bom
deixar claro que tais requisitos não estão presentes no caso em tela, já que a
decisão que permitiu a execução provisória da pena permanece íntegra, a exemplo
da legislação que lhe dá suporte. A rigor, a posição adversa é que faleceria de
congruência com valores constitucionais e sociais caros, como a efetividade do
direito penal e o combate à impunidade.
A conclusão fica para amanhã. Até lá.