Quando a Lava-Jato revelou o mar de lama envolvendo políticos, comandantes de estatais e a alta cúpula do empresariado
tupiniquim, o STF voltou a
admitir o início do cumprimento da pena após a condenação em segunda instância
(detalhes na postagem anterior). Com isso, muita gente graúda — da cadeia ou
prestes a ser mandado para lá —, passou a entregar gente ainda mais graúda em
troca de punições mais brandas. Não obstante, quando a força-tarefa começou a
bafejar o cangote de Lula, a
Corte passou a ser pressionada para restabelecer o entendimento anterior, que,
como vimos, vigeu no Brasil apenas e 7 dos últimos 77 anos.
A “plausibilidade” de reforma da sentença de Lula é uma falácia, mas tem
servido de argumento para ministros como Gilmar Mendes (que até não muito tempo atrás era defensor
ferrenho da prisão após condenação em segunda instância), Lewandowski, Toffoli, Celso de Mello e Marco Aurélio — este última, nunca é
demais lembrar, se superou na semana passada, ao protagonizar uma encenação
revista e atualizada da palhaçada encenada em julho pelo desembargador
“cumpanhêro” Rogério Favreto,
do TRF-4 (detalhes nesta
postagem).
Lula foi
condenado a 9 anos e meio de prisão, teve a pena aumentada para 12 anos e 1 mês
pelo TRF-4 e está preso
desde abril — outras condenações estão por vir, já que ele é réu em 8
processos, dois dos quais sob a pena da juíza substituta Gabriela Hardt, que assumiu os
processos da Lava-Jato na 13ª
Vara Federal do Paraná depois que Sérgio Moro aceitou o convite do presidente eleito para
chefiar a pasta da Justiça e Segurança
Pública no próximo governo. Do ponto de vista jurídico, sua prisão não
constituiu um fato novo que justifique a revisão da jurisprudência do STF, mas tem propiciado uma indesejável
reedição da lei Fleury para
soltar o grão-petralha e evitar que outros “figurões” — como Michel Temer e atuais ministros e
parlamentares, hoje cobertos pelo guarda-chuva do foro privilegiado, mas que
estarão na chuva quando terminarem seus mandatos — acabem na prisão.
Quando julgou pedido de habeas corpus em favor de Lula,
logo após sua prisão, o Supremo manteve
o entendimento cristalizado em 2016 — que autoriza o cumprimento antecipado da
pena após condenação em segunda instância. Mas Marco Aurélio e Lewandowski,
que foram votos vencidos, têm se empenhado desde então em forçar uma revisão. No
biênio em que presidiu a Corte, Cármen
Lúcia se recusou a “apequenar o Supremo” reabrindo a discussão sobre
um tema que foi revisitado quatro vezes no passado recente (mais detalhes na
postagem de amanhã) —, e por isso foi alvo de grosserias de Marco Aurélio, o impoluto. E o mesmo
aconteceu com Rosa Weber, que
também rejeitou a tese que favoreceria Lula. Célebre pelos pronunciamentos, digamos, confusos, a ministra se
redimiu ao dizer, litteris: “Compreendido o tribunal como instituição, a
simples mudança de composição não constitui fator suficiente para mudar
jurisprudência”.
Na liminar que assinou
na semana passada — e que poderia ter produzido consequências desastrosas
se não tivesse sido cassada pelo presidente do Supremo —, Marco Aurélio,
o incrível, escreveu que a segurança jurídica “pressupõe a supremacia não de
maioria eventual (…), mas da Constituição”, e aproveitou o embalo para
destratar seus pares, acusando-os de desrespeitar a ordem
jurídico-constitucional: “Que cada qual faça a sua parte, com
desassombro, com pureza d’alma, segundo ciência e consciência possuídas”. E
acrescentou, quase como um deboche: “Tempos estranhos os vivenciados nesta
sofrida República!”
O início do cumprimento da pena após condenação em segunda
instância é uma questão que divide os juristas, mas vale lembrar nossa Justiça
tem quatro instâncias e um vasto
cardápio de apelos, recursos, embargos e chicanas protelatórias possíveis.
Nesse cenário, vincular o cumprimento da pena ao trânsito em julgado da
condenação — ou, na melhor das hipóteses, à decisão da terceira instância (STJ), como sugere o ministro Toffoli — seria ferir de morte a Lava-Jato, cujo sucesso se deve em
grande medida às delações premiadas,
que por sua vez dependem de conduções
coercitivas, prisões preventivas e ameaça real de cumprimento da pena —
sem o que os bandidos de colarinho branco dificilmente entregariam a
rapadura.
A possibilidade de Lula ser
preso instaurou uma cizânia, entre os ministros Supremos, que se acentuou ainda
mais depois que a prisão se tornou um fato consumado. A partir de então, os
favoráveis ao “Lula-Livre” vêm
manobrando em duas frentes: a primeira é um habeas corpus que estava sendo apreciado pela segunda turma e
foi suspenso por um pedido de vista de Gilmar Mendes, o divino, quando dois votos contrários sugeriam que
o pleito da defesa seria rejeitado, e a segunda remete às famigeradas ADCs, que estão sob relatoria de Marco Aurélio, o salvador, e parecem
ter se tornado uma questão de vida ou morte para esse magistrado.
A Constituição não proíbe a execução provisória da pena
após condenação em segunda instância, embora explicite que “ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal
condenatória” — o tão falado “princípio da presunção de inocência”,
do qual se infere que o onus
probandi é de quem acusa. Portanto, cabe ao Estado provar a culpa do
acusado, o que significa produzir provas de que o crime de fato ocorreu e de
que foi ele (o acusado) quem o cometeu. À defesa compete apenas provar teses
defensivas — como causas excludentes da ilicitude (caso de legítima defesa, por
exemplo) e/ou da culpabilidade (coação moral irresistível, também por exemplo),
além de extintiva da punibilidade (caso da prescrição, idem) e eventuais
álibis.
É importante salientar que o
legislador não pode transferir o ônus da prova o réu, sob pena de
violar o princípio da presunção de inocência. Em outras palavras, isso
significa que a pessoa investigada ou processada não pode ser tratada
juridicamente como culpada antes do trânsito em julgado da sentença que
reconheça sua culpa. Mas a questão é que a Constituição não deixa claro o que
significa “não ser juridicamente tratado
como culpado” — como veremos em detalhes no próximo post.