sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Ora (direis) ouvir estrelas!

“E conversamos toda a noite, enquanto a Via Láctea, como um pálio aberto, cintila.”
Pois é, o velho Olavo (Bilac) sabia das coisas. Claro que o céu carioca devia ser bem mais límpido no final do século XIX do que atualmente, já que as luzes das grandes metrópoles e a calota de poluição que encobre a maioria delas prejudicam sensivelmente a observações dos corpos celestes a olho nu. Aliás, isso me faz lembrar meus tempos de garoto, quando passava férias num sítio da família, na região nordeste de SP, e tão logo o sol se punha de um lado, a estrela Vésper (Venus, na verdade) despontava do outro, e a impressão que se tinha era de que bastava estender a mão para tocá-la - depois disso, só tive essa mesma sensação de proximidade com as estrelas em Paty do Alferes (RJ).
Passando ao que interessa, além de navegar pela Terra, o Google Earth - disponível para download em http://www.google.com/earth/index.html - permite visualizar objetos celestes (estrelas, constelações, galáxias, planetas etc.), bastando para isso clicar em Visualizar / Trocar para Sky.
Ao utilizar esse recurso, você deixa de visualizar a imagem “terrestre” do ponto escolhido e passa a ver o que há no céu acima dele. Vale conferir.

Reza uma antiga lenda árabe que o califa AL-MOTACÉM, sabendo que um famoso dervixe (espécie de monge muçulmano, sábio, mago) estava de passagem por Bagdá, chamou-o à sua presença e, após lhe mandar servir um lauto jantar na varanda do palácio, perguntou:
- Estás vendo aquele morro atrás do qual o sol acaba de se pôr, meu bom homem?
- Sim, Majestade – respondeu o dervixe.
- E podes me dizer quantos cestos seriam necessários para conter toda aquela terra?
O sábio cofiou o bigode, curvou-se respeitosamente diante do monarca e respondeu:
- Depende, majestade.
- Depende do quê? – inquiriu o califa.
- Do tamanho do cesto, majestade.
Irritado por ter sido feito de bobo, mas consciente de que a resposta fazia sentido, o rei conteve a ira e tornou a investir:
- Estás vendo esse manto de estrelas brilhando no céu, dervixe?
- Sim, Majestade.
- E podes me dizer quantas são?
Depois de cofiar novamente os longos bigodes e fitar o céu por alguns instantes, o mago fez uma nova mesura e respondeu:
- Um bilhão, setecentos e cinqüenta e dois milhões, trezentos e vinte e quatro mil, quinhentos e catorze astros brilham esta noite nos céus de Bagdá, Majestade.
Pasmo diante da prontidão da resposta, o califa perguntou:
- Tens certeza disso? Como posso saber se tua resposta é correta?
- Majestade – disse o dervixe –, eu sou um homem velho, mas ainda me resta algum tempo de vida, e se Vossa Alteza me honrar com sua hospitalidade, acho que posso esperar até que o senhor mesmo termine de contá-las.
Sentindo-se ultrajado, o rei chamou seu grão-vizir (primeiro ministro) e ordenou a execução sumária do pobre espertalhão, que, ao ouvir tal sentença, curvou-se respeitosamente e argumentou:
- Peço humildemente ao Emir dos Crentes que reconsidere sua decisão, pois uma pena tão severa aplicada a um pobre dervixe irá certamente conspurcar a imagem de justo e clemente que os bagdalis tanto admiram em Vossa Majestade.
Depois de cofiar a barba e pensar por longos minutos, disse o rei ao embusteiro:
- Não posso permitir que um farsante do teu quilate faça pouco da minha real pessoa e continue caminhando impune pelo reino dos vivos. No entanto, devido ao elevado espírito de justiça que tu mesmo mencionaste, conceder-te-ei o direito de escolher ser degolado na sala branca ou na sala negra da masmorra deste palácio. Para tanto, basta que profiras tuas últimas palavras: se disseres uma verdade, perderás tua imunda cabeça na sala branca; se disseres uma mentira, serás decapitado na sala negra:
- Serei degolado na sala negra - disse o dervixe, após alguns minutos de introspecção.
Ao ouvir essas palavras, o grão-vizir chamou de lado o monarca e ponderou:
- Majestade, a escolha do mago torna impossível executá-lo nos moldes propostos por Vossa Alteza, pois se a degola ocorrer na sala negra, ele terá dito uma verdade, devendo, portanto, ser executado na sala branca.
- Que ele seja degolado na sala branca - bradou o sultão.
- Nesse caso, Majestade, a verdade se tornará uma mentira, e ele terá ser executado na sala negra.
Conclusão dos fatos: sem outra opção, o califa engoliu a ira, ruminou o desacato (em sua real visão) e liberou o dervixe, que seguiu em paz o seu caminho. Afinal, palavra de rei não volta atrás.

Observação: Lembrei-me desta velha fábula (narrada magistralmente por Malba Tahan, que na verdade era carioca e se chamava Júlio César de Mello e Souza) ao ler uma matéria publicada na edição 2195 da revista VEJA, segundo a qual a estimativa do número de estrelas que povoam o universo aumentou recentemente de 100 para 3oo sextilhões (3 seguido de 23 zeros). Tentei reproduzi-la de memória, e ainda que não tenha conseguido resgatar seu brilhantismo original, acho que valeu o esforço. Seja como for, se o califa de Bagdá tivesse seguido a sugestão do dervixe e contado uma a uma as estrelas visíveis da varanda de seu palácio, é bem possível que o espertalhão continuasse até hoje enchendo a pança à custa de Sua Alteza.

Bom f.d.s. a todos e até mais ler.