sábado, 25 de janeiro de 2020

AINDA SOBRE O JUIZ DE GARANTIAS



Há quem afirme que cozinhar — atividade surgida há cerca de 2 milhões de anos com o Homo Erectus — teria sido o primeiro ofício exclusivo dos seres humanos. Afinal, se a prostituição, que muitos consideram a mais antiga das profissões, surgiu quando alguém teve a ideia de oferecer sexo em troca de comida, então já havia coletores de alimentos (no caso, caçadores) dispostos a aceitar o escambo. Mas eu apostaria na política: afinal, se quando Deus criou o mundo havia o Caos, alguém deve tê-lo criado, e quem melhora para criar o Caos do que os políticos?

Falando nessa caterva, nossos nobres parlamentares embutiram na proposta anticrime e anticorrupção do ministro da Justiça e Segurança Pública a figura do “juiz de garantias”. Conforme vimos na postagem anterior, essa aberração foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Bolsonaro — que mais uma vez deixou de apoiar o ministro a quem prometeu carta-branca quando o convidou para integrar o governo. Mas o que nos interessa dizer nesta postagem é que Dias Toffoli, responsável pelo plantão do Supremo durante o recesso judiciário, considerou constitucional a excrescência em questão, mas adiou sua entrada em vigor por 180 dias, e que menos de uma semana depois, Luiz Fux  — que assumiu o plantão na última segunda-feira — revogou a decisão toffoliana e suspendeu a implementação aberração por tempo indeterminado — impondo, segundo a mídia tendenciosa e sensacionalista, “uma derrota ao Congresso, ao chefe do Executivo e ao presidente do STF”.

Ao contrário de Toffoli, o multíscio, Fux entendeu que a lei que criou o tal juiz de garantias contém “vícios de inconstitucionalidade”. Em sua decisão de 43 páginas, o ministro apontou a ausência de recursos previstos para a implantação da medida e a falta de estudos sobre o impacto dela no combate à criminalidade. Sua decisão — tomada no âmbito de uma ação da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público contra a implantação do juiz de garantias que chegou ao Supremo no último dia 20, quando Toffoli já havia saído de férias e deixado o plantão a cargo do vice — foi comemorada no gabinete do ministro Sérgio Moro, que havia recomendado a Bolsonaro o veto ao dispositivo.

Rodrigo Maia, o Botafogo das planilhas do departamento de propinas da Odebrecht, foi um dos que criticaram enfaticamente a decisão do vice-presidente do Supremo: “Eu acho a decisão do ministro Fux desnecessária e desrespeitosa com o Parlamento e com o governo, com os outros Poderes”, declarou o presidente da Câmara à Folha. Maia disse ainda que, depois de um primeiro semestre turbulento, com embates entre Executivo, Legislativo e Judiciário, os Poderes haviam estabelecido relação harmoniosa, mas a decisão de Fux gera “perplexidade e indignação” do Congresso e é um mau sinal para investidores (parafraseando a Copélia, personagem de Arlete Salles no humorístico global Toma Lá, Dá Cá, eu prefiro não comentar).

Toffoli e Fux ainda não protagonizaram bate-bocas como aquele em que Luiz Roberto Barroso classificou Gilmar mendes como "uma pessoa horrível, mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia", mas o fato é que eles mal se falam. E o entendimento do vice-presidente dos togados supremos sobre o juiz de garantias é diametralmente oposto ao de seu presidente, que negou que a adoção da medida provocasse aumento de custos, sob o argumento de que se tratava de uma simples  questão de “organização interna da Justiça”.

Observação: Como lembrou recentemente o vice-decano do Supremo, ministro Marco Aurélio, que às vezes dá uma bola dentro (até os ponteiros de um relógio quebrado apontam a hora certa duas vezes por dia), “Os integrantes [do Supremo] ombreiam, apenas têm acima o colegiado. O presidente é coordenador e não superior hierárquico dos pares. Coordena, simplesmente coordena, os trabalhos do colegiado. Fora isso é desconhecer a ordem jurídica, a Constituição Federal, as leis e o regimento interno, enfraquecendo a instituição, afastando a legitimidade das decisões que profira”. 

Sobre Toffoli, nunca é demais lembrar que sua nomeação para o STF foi (mais) uma demonstração cabal da falta de noção de Lula sobre a dimensão do cargo de ministro. Em sua trajetória até a mais alta Corte do país, o dito-cujo foi advogado do Sindicato dos Metalúrgicos de SBC, consultor jurídico da CUT, advogado nas campanhas de Lula em 1998, 2002 e 2006 e subchefe para assuntos jurídicos da Casa Civil da presidência da República e Advogado Geral da União. Abrilhantam seu invejável currículo duas reprovações em concursos para juiz de primeiro grau em São Paulo, sempre na primeira fase — que testa conhecimentos gerais e noções básicas de Direito dos candidatos. Para além de tudo isso (e para o mal dos nossas pecados), o ministro não despiu a farda de militante petista quando vestiu a suprema toga, e foi buscar apoio em Gilmar Mendes, que é quem melhor encarna a figura do velho coronel político. Já consolidado no novo habitat, o ex-advogado do PT passou a emular os piores hábitos do novo padrinho — a arrogância incontida, a grosseria, a falta de limites, o uso da autoridade da forma mais arbitrária possível, e por aí segue a lamentável procissão.

Conforme publicou o Estado, Toffoli deu aval para que Bolsonaro sancionasse a medida, fazendo chegar ao Palácio do Planalto que a proposta era “factível” e “possível” de ser implementada. Logo depois da sanção do pacote anticrime pelo capitão-decepção, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) acionaram o Supremo, sob a alegação de que não há como dar execução à lei “sem provocar aumento de despesas”.

Partidos como Cidadania, Podemos e PSL também entraram com ações no STF, que, por sorteio eletrônico, ficaram sob a relatoria de Fux, mas devido “à urgência do assunto e à proximidade da vigência da lei”, Toffoli decidiu agir com pressa. “O relator, se houver pedido de reconsideração, tem competência para analisar. Não tem nenhum problema quanto a isso. O importante é fixar parâmetros que deem segurança jurídica”, afirmou na ocasião o presidente do STF, esclarecendo que havia tratado previamente do tema com o vice.

A palavra final sobre mais esse furdunço será do plenário do Supremo (suponho que teremos mais um placar de 6 a 5, mas para qual lado a balança penderá já é outra conversa). Na avaliação de O Estado, a maioria dos togados, inclusive o próprio Toffoli, apoia o juiz de garantias. Fux, porém, não é um deles, a exemplo do juiz Bruno Bodart da Costa — um dos principais auxiliares do vice-presidente do STF —, que chegou a questionar no Twitter a implantação da figura do juiz de garantias. “Perguntas relevantes sobre o juiz de garantias: Quantos inocentes serão efetivamente absolvidos em razão dessa nova salvaguarda? Quantos culpados serão indevidamente inocentados (incluindo prescrição) em razão dessa nova salvaguarda?”, postou o magistrado no dia 26 de dezembro.

Como salientou o jurista Modesto Carvalhosa, TOFFOLI DIZ QUE JUIZ DE GARANTIAS É CONSTITUCIONAL — CORRUPTOS CALADOS; FUX DEMONSTRA O CONTRÁRIO E SUSPENDE O JABUTI — CORRUPTOS IRADOS. Tirem suas próprias conclusões.