Para provar que era amigo do mercado e obter o apoio dos empresários, Bolsonaro, o estatista que acreditava em Estado grande e intervencionista, que sempre lutou por privilégios para corporações que se locupletam do Estado há décadas, foi buscar Paulo Guedes, que embarcou em uma canoa que deveria saber furada.
Para provar que era inimigo da corrupção e obter o apoio da
classe média, o deputado que, em sete mandatos, pertenceu a oito partidos
diferentes, todos de aluguel, adepto das práticas da baixa política, amigo de
milicianos, foi buscar Sergio Moro, que embarcou em uma canoa que
deveria saber furada.
Para obter o apoio das Forças Armadas, o oficial de
baixa patente, despreparado, agressivo e falastrão, condenado por
insubordinação e indisciplina, e enxotado da corporação, foi buscar
legitimidade em uma fieira de generais, que embarcaram em uma canoa que
deveriam saber furada.
Tal tripé não podia mesmo dar certo.
Bolsonaro fez Moro reverter uma nomeação,
tomou-lhe o Coaf, forçou-o a substituir um superintendente da Polícia
Federal, esnobou o projeto contra a corrupção, e mais. Moro fingiu
que não viu, tentou negociar, e por fim abandonou a canoa para salvar o
prestígio que restava. Foi-se um pé.
O presidente desautorizou Guedes, interferiu em seu
ministério, sabotou seus projetos, e, com o Centrão, enterra de vez a
agenda econômica. Se Guedes fica, vira um dois de paus e se desmoraliza;
se sai, é acusado de traidor e se desmoraliza (Mandetta pode lhe ensinar
a sair da canoa sem se afogar). Vai-se outro pé.
O terceiro pé não vê o risco que corre. A atitude de Bolsonaro
sobre a Covid-19 é catastrófica, talvez criminosa. Os ataques a
governadores, Congresso e STF são crime de responsabilidade. O
presidente é alvo de duas investigações criminais, e vai sofrer estilhaços de
outras três. Tem contra si mais de trinta pedidos de impeachment.
Mas os militares apoiam Bolsonaro. Aprovaram a
demissão de Mandetta, Braga Netto é chefe do gabinete
(inexistente) de crise, Ramos reclama que a imprensa só fala de “cova e
corpo”. Na Saúde, militares aprovam a mudança no protocolo da cloroquina. Heleno
e Ramos (e mais quatro ministros militares) compareceram a um comício
golpista e contra o isolamento. Ramos negocia o apoio do Centrão
em troca de cargos e verbas, Braga Netto assina as nomeações.
Corroboraram a tese de que Bolsonaro — contra todas as evidências — não
falava da PF, mas de sua segurança pessoal.
Nos últimos 35 anos, as Forças Armadas vêm tendo uma
conduta irrepreensível, merecedora da admiração e do reconhecimento dos
brasileiros: a imagem que construíram é um patrimônio inestimável. Há muitos
oficiais, como os generais Pujol, Santa Rosa ou Santos Cruz,
que certamente reprovam a conduta do presidente e dos colegas de farda. Mas a
imagem das FFAA depende de quem fala e age, não de quem está em
silêncio.
Os militares precisam entender que no governo, que é civil,
não devem obediência cega ao comandante supremo das Forças Armadas, nem
é seu dever salvar o governo: sua lealdade maior é com o país. É hora de
desembarcar da canoa furada.
Texto de Ricardo Rangel, publicado em VEJA edição nº 2688