sexta-feira, 22 de maio de 2020

A CLOROQUINA, A TUBAÍNA E A ESTRICNINA


Sem titular desde que o oncologista Nelson Teich pediu demissão, o Ministério da Saúde é gerido interinamente pelo general Eduardo Pazuello, que já promoveu alterações dignas de um ministro efetivo: juntou mais nove militares do Exército aos outros sete efetivados anteriormente, formando uma tropa de 16 fardados. Portanto, o novo protocolo do Ministério da Saúde sobre o uso da cloroquina no tratamento da Covid-19 não é uma peça médica, mas um documento marcial. 

Bolsonaro disse que ainda não definiu um novo nome para a pasta: "Por enquanto, deixa o general Pazuello. Ele está indo muito bem", afirmou. "É um tremendo de um gestor e está fazendo um excepcional trabalho".

E põe excepcional nisso: somando-se ao grupo o próprio general e o coronel Antônio Élcio Franco Filho, promovido de secretário-executivo adjunto para secretário-executivo substituto, chega-se a um total de 18 militares no Ministério da Saúde, nenhum dos quais com formação médica.

A mudança no protocolo nada tem a ver não com a saúde dos pacientes, mas sim com a guerra ideológica que o presidente criou para ocupar o tempo vago que obteve ao abrir mão de comandar o combate da crise. O general Pazuello, improvisado interinamente no comando da Pasta, simplesmente acatou uma ordem do comandante em chefe das Forças Armadas.

O documento faz questão de explicitar a inexistência de análises ou ensaios clínicos que comprovem os "benefícios inequívocos" da cloroquina no tratamento do coronavírus, e deixa a critério dos médicos a prescrição, exigindo dos pacientes anuência por escrito. Assim, se algo der errado, a culpa não será do médico, do pseudo ministro nem do presidente da República, mas única e exclusivamente do próprio paciente.

Não é que o governo esteja lavando as mãos. O problema é que o protocolo autoriza os médicos a ensaboarem suas mãos na mesma bacia, e ainda esconde o sabonete dos pacientes e dos seus familiares. E o drama sanitário vai ganhando contornos de tragédia histórica enquanto Bolsonaro trata a ciência como ficção científica e reitera sua pregação em favor do retorno a uma normalidade que não existe.

Bolsonaro reconhece que a formalização de sua ideia fixa, refugada pelos ex-ministros da Saúde Henrique Mandetta e Nelson Teich, não altera a realidade atual. "O que é a democracia? Você não quer? Você não faz. Você não é obrigado a tomar cloroquina, agora, quem quiser tomar que tome." É precisamente o que vem ocorrendo. Pacientes e médicos decidem quando utilizar a cloroquina, cuja serventia no combate ao coronavírus não tem comprovação científica e sujeita os doentes a efeitos colaterais.

Na mesma entrevista em que fez piada, gargalhou e voltou a tratar a cloroquina como poção mágica, Bolsonaro colocou em dúvida os números divulgados por seu próprio ministério. Insinuou que governos estaduais estariam inflando o desastre. Lançou nova suspeição em direção aos governadores às vésperas de se encontrar com eles numa videoconferência organizada por sugestão do presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Contra esse pano de fundo tisnado pela descoordenação, o vírus prevalece. E Bolsonaro faz piada: "Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda toma tubaína”. Coube ao médico Dimas Covas, à frente do comitê de enfrentamento da crise montado pelo governo de São Paulo, pronunciar o resumo mais fiel do flagelo: "Estamos perdendo essa batalha contra o vírus. Essa é a realidade. O vírus, nesse momento, está vencendo a guerra.”

O governo sofre um apagão sanitário. Não há ministro da Saúde. Inexiste uma política nacional de gerenciamento da pandemia. Sob críticas de um presidente que se recusa a presidir a crise desde Brasília, governadores e prefeitos adotam providências desencontradas. Medidas de socorro financeiro a pessoas e empresas esbarram na burocracia. 

Segundo dados reunidos pelo Our World in Data, 56 milhões de pessoas morrem por ano no mundo e a principal causa de morte eram as doenças cardiovasculares. No Brasil, a Covid-19 é tida e havida como a principal causa de mortes, à frente de infarto e câncer. Mas apenas se não se levar em conta a “ideologia política”.

Bolsonaro não se deu conta, mas nessa matéria a fronteira da imaginação é a realidade. Mais cedo ou mais tarde os fatos apresentarão a conta por seu comportamento, e o preço político aumenta na proporção direta do crescimento do número de mortes.

Claro que sempre existe a possibilidade de ele renunciar. Ou de “ser renunciado”, caso Maia se anime a tocar adiante um dos 35 pedidos de impeachment contra o trevoso. Ou de o capitão responder a processo no STF se, ao cabo das investigações que apuram a interferência presidencial na PF em benefício próprio e dos primeiros-filhos, o PGR Augusto Aras denunciá-lo e o decano acolher a denúncia. E, no pior cenário, sempre sobra a estricnina...