sábado, 23 de maio de 2020

SOBRE PANDEMIAS, INCOMPETÊNCIA, CRETINICE E BAIXARIA



Antes de qualquer outra coisa, a notícia do dia (ou do final da tarde de ontem, melhor dizendo): O ministro Celso de Mello liberou tanto a íntegra do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril quanto sua transcrição, à exceção de alguns trechos (e respectiva degravação) nos quais há referência a determinados Estados estrangeiros”. Litteris: 

Determino o levantamento da nota de sigilo imposta em despacho por mim proferido no dia 08/05/2020 (Petição nº 29.960/2020), liberando integralmente, em consequência, tanto o conteúdo do vídeo da reunião ministerial de 22/04/2020, no Palácio do Planalto, quanto o teor da degravação referente a mencionado encontro de Ministros de Estado e de outras autoridades

A quem interessar possa, basta clicar aqui para ler a transcrição. 

Mas tem mais: O pedido de apreensão dos celulares de Jair Bolsonaro e do filho Zero Dois, feito em notícias-crimes enviadas pelo PDT, PSB e PV ao STF e apensadas ao inquérito que apura suposta tentativa de intervenção do presidente na PF, foi recebido pelo decano e encaminhado ao PGR para manifestação. O desmemoriado ministro-chefe do GSI, em nota, classificou o pedido de "afronta à intimidade do chefe do Executivo" e afirmou que "poderá haver consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional", por ser uma evidente "tentativa de comprometer a harmonia entre o poderes". 

Vale ressaltar que o decano seguiu fielmente o que determina o CPP Brasileiro, e que a reação do general foi exagerada, para não dizer absurda. Em vez de rosnar contra o STF, o estrelado deveria estrilar com sua assessoria Aliás, há algumas semanas atrás ele deu piti porque o decano usou a expressão "debaixo de vara" ao convocar os ministros militares para testemunharem no imbróglio Moro x Bolsonaro, que não tem conotação pejorativa: as divisões do poder judiciário são denominadas "varas", e a expressão "conduzido debaixo de vara" significa "mediante condução coercitiva", ou seja, “forçado pela autoridade judicial”. Enfim, a julgar pelo "nível" da reunião ministerial, não era mesmo de se esperar coisa melhor dos assessores do presidente. E nem do próprio, cujas falas foram de uma grosseria a toda prova.

Passemos ao texto que eu havia programado para hoje:

Uma velha marchinha de carnaval — do Sílvio Spantus, se não me falha a memória — dizia que “o homem nasce, o homem cresce, depois fica bobo e casa”. Faz sentido, mas o ponto a que quero chegar é outro: todos os seres vivos — pelo menos os deste planeta — seguem a mesma monótona rotina: nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. E o ser humano não foge à regra (alguns preferem não se reproduzir, mas isso é outra conversa).

A vida é feita de escolhas”, ensinou-nos o oncologista Nelson Teich ao comunicar sua demissão do Ministério da Saúde. E escolhas têm consequências. Desde a saída do ministro, chefia a pasta como interino o general da ativa Eduardo Pazuello, que Bolsonaro havia promovido a segundo de Teich, e uma das primeiras medidas tomadas pelo estrelado foi nomear colegas de farda às baciadas, sob a justificativa de que “militares são preparados para lidar com crises como a da Covid-19”.

A partir do momento em que passamos a nos conhecer por gente e ao longo de toda a estrada da vida, até seu inexorável fim — que é a chácara do vigário, onde se come capim pela raiz vestindo um nada confortável pijama de madeira —, a inevitabilidade da morte e a incerteza do “quando” nos assombra qual eguns mal despachados. Na juventude, achamo-nos imortais. À medida que amadurecermos, descobrimos que tanto é loucura não pensar na morte quanto pensar nela o tempo todo. Mas quanto mais perto chegamos da reta final, mais se acentua nossa preocupação com o desfecho.

Eu não saberia dizer se isso é prerrogativa exclusiva dos humanos ou se estende aos demais animais — dos quais nos diferenciamos, dizem, pela capacidade de racionar, ainda que uma parcela significativa do eleitorado tupiniquim não tenha (ou não exercite) essa aptidão, mesmo sendo formada por indivíduos supostamente racionais (como prova a sequência de luminares eleitos pelo voto popular para presidir o Brasil desde a redemocratização).

Observação: Até pouco tempo atrás, a ciência dividia a vida entre “humanos” e “animais”, como se uma baleia tivesse mais a ver com uma ameba do que com um ser humano. Hoje, a tese mais aceita é a de que a diferença entre as nossas faculdades mentais e as dos gatos, chimpanzés e periquitos é de grau, não de tipo. Seria como comparar um Porsche com um Fusca: há uma clara diferença de nível entre eles, mas ambos são carros. Chimpanzés, por exemplo, têm sentimentos complexos como inveja e vergonha (escondem o rosto quando fazem alguma besteira). E quem tem vergonha não é menos consciente que nós.

Fato é que jogamos esse jogo com as cartas que a vida nos dá, enquanto a morte segue regras próprias. Daí o ordem natural das coisas se inverter, levando pais a sepultar seus filhos. Daí a ceifadora decidir fazer hora extra — como durante as duas grandes guerras mundiais, que produziram milhões de cadáveres no século passado, ou as pandemias  que mereceriam uma postagem em separado, mas um breve resumo das mais notórias dá para o gasto.

A peste bubônica, causada pela bactéria Yersinia pestis e que se dissemina pelo contato com pulgas e roedores infectados, é considerada a causadora da Peste Negra, e pode ter reduzido a população mundial de 450 milhões de pessoas para 350 milhões no século XIV.

 A varíola, também chamada de “bixiga”, é causada pelo vírus Orthopoxvírus variolae e se espalha de pessoa para pessoa através das vias respiratórias. Essa doença atormentou a humanidade por mais de 3 mil anos — tanto o faraó egípcio Ramsés II quanto a rainha Maria II, da Inglaterra, e o rei Luís XV, da França, foram afetados —, até ser erradicada do planeta em 1980, devido à vacinação em massa. Mas é bom lembrar que nem o passado é previsível no Brasil, e que o sarampo, supostamente erradicado do país há décadas, voltou a atacar de um tempo a esta parte, sobretudo devido ao aumento exponencial de imbecis que se autodeclaram antivacinas.

A cólera, causada pela bactéria Vibrio cholerae, foi considerada a primeira pandemia global e matou centenas de milhares de pessoas em 1817. Como essa bactéria é mutante, novos ciclos epidêmicos surgem de tempos em tempos. A transmissão se dá pelo consumo de água ou alimentos contaminados e é mais comum em países subdesenvolvidos. No Iêmen, mais de 40 mil pessoas morreram de cólera em 2019; o Brasil já amargou vários surtos, especialmente em áreas mais pobres do nordeste.

A “gripe espanhola” não surgiu na Espanha — que tampouco a foi o país mais afetado pela doença. O epíteto deveu-se ao fato de aquele país ser neutro na Primeira Grande Guerra Mundial — que estava em curso quando se deu a pandemia — e ter falado abertamente do assunto (enquanto outros não o fizeram para não afetar ainda mais o moral da população). Uma variação do vírus Influenza foi responsável pela tal gripe, que infectou cerca de 500 milhões de pessoas (¼ da população mundial de então) entre 1918 e 1920 e, dessas, matou cerca de 10%. O Brasil contabilizou mais de 30 mil vítimas fatais, incluindo Rodrigues Alves, em 1919, que havia sido eleito presidente pela segunda vez (não consecutiva).

A gripe suína (H1N1) causou a primeira pandemia do século XXI. O vírus surgido em porcos, no México, em 2009, espalhou-se rapidamente pelo mundo e matou 16 mil pessoas. No Brasil, o primeiro caso foi confirmado em maio daquele ano e, no fim de junho, 627 pessoas haviam sido infectadas. O contágio se dá a partir de gotículas respiratórias que ficam em suspensão no ar ou permanecem ativas e operantes em superfícies contaminadas.

Nunca antes na história deste país (parafraseando o velho ladrão eneadáctilo), muito menos durante uma pandemia, dois ministros da Saúde deixaram o cargo em menos de 30 dias. E noves fora os 21 anos de ditadura, jamais respondeu pela pasta, nem mesmo interinamente, um militar sem diploma de médico. É clara como o dia a intenção de Bolsonaro de puxar os cordéis nos bastidores e ter à frente do ministério alguém que siga suas ordens cegamente.

Sob Pazuello, o Ministério da Saúde divulgou na última quarta-feira o protocolo que libera no SUS o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina também para casos leves de Covid-19. Até então, o uso do medicamente era autorizado somente para casos graves. Não é à toa que Bolsonaro pretende manter o militar à frente da pasta "por um bom tempo".

Observação: Vale ressaltar a importância da hierarquia, da autoridade e da disciplina entre militares, sendo a primeira a ordenação da autoridade em crescentes graus; a segunda, a capacidade ou qualidade do poder de mandar (poder que, pela sua legitimidade ou legalidade, deve ser obedecido), e a última, o dever de obediência pronta e integral — que, neste sentido, decorre diretamente da hierarquia-autoridade.  

A despeito de ser um expert em logística — justificativa usada pelo capitão pelo presidente para nomear o general ministro interino — Pazuello não tem formação na área de saúde. Mesmo que seja assessorado por uma “equipe boa” de médicos, também nas palavras do capitão sem luz, melhor seria termos à frente do ministério da Saúde um epidemiologista, um infectologista ou mesmo um clínico geral, notadamente quando estamos em guerra contra um vírus assassino — e e vimos perdendo uma batalha atrás da outra (além da crise sanitária, temos mais duas para administrar ao mesmo tempo, uma na economia e outra na política).

Observação: Durante uma almoço com o prefeito do Rio, um dia depois da reunião virtual com governadores, o capitão sem luz afirmou candidamente que o país está na “iminência" de abrir o comércio, mesmo com a continuidade da pandemia da Covid-19.

Tudo indica que os militares aderiram sem restrições à marcha da insensatez de seu comandante-em-chefe. O general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, não só acompanhou Bolsonaro na manifestação subversiva defronte ao Palácio do Planalto, como teve o braço levantado para a claque de bolsomínions pelo próprio presidente, como se político fosse. Ramos é general da ativa, e pelo disposto no artigo 142, § 3º, inciso V, da Constituição Federal, os militares, enquanto em serviço ativo, não podem estar filiados a partido político. A rigor, eles não pode sequer opinar sobre política, à luz do decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002.

Pelo menos 2897 militares, dos três ramos das Forças Armadas, integravam o governo em março passado. E o número cresceu depois que Pazuello carregou nada menos que nove colegas de farda para o ministério da Saúde. E a mesma militarização campeia nos segundo e terceiro escalões dos demais ministérios, especialmente nos oito que são chefiados por militares.

Os fardados sempre defenderam a tese de que não existem ministros militares, mas ministros que têm origem militar, assim como outros são engenheiros, advogados, ou mesmo políticos. Pode até ser, mas, na prática, assim como o PT aparelhou o governo nos seus 15 anos com sindicalistas e políticos fisiológicos do centrão, Bolsonaro está aparelhando o seu com o mesmo tipo de políticos e militares, e eles não podem mais se escusar de fazer parte de um governo populista de baixa qualidade técnica e moral.

A ver no que isso tudo vai dar.