Sobre o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, cuja divulgação
foi autorizada pelo ministro Celso de Mello e que os noticiários vem
reverberando ad nauseam desde a tarde da última sexta-feira, não há
consenso entre jornalistas, analistas, comentaristas e outros istas sobre a
comprovação da suposta (?!) interferência do presidente na PF (que, a meu ver, foi exposta com uma clareza meridiana).
Observação: O vídeo com a íntegra da reunião está disponível no final desta postagem; para quem preferir ler transcrição (o arquivo .PDF tem 75 páginas), basta clicar aqui.
Cada qual tem direito a sua opinião, mas não a seus próprios
fatos. Para mim ficou nítido que o conteúdo da filmagem evidencia o que já se suspeitava: se alguém faltou com a verdade nessa guerra de narrativas, não foi o
ex-ministro Sergio Moro. À luz da gravação, a versão presidencial de que queria interferir na sua segurança pessoal, e não na superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro, torna-se completamente inverossímil. Todavia, está visto que essa discussão é improdutiva e, por que não dizer, já está ficando cansativa. Num país fendido pela cizânia da dicotomia política ideológica partidária, a falta de bom senso impede o consenso. No mais, pouco interessam a minha opinião, a sua ou a de quem quer que seja que não seja Augusto Aras, a quem cabe decidir se denuncia, ou não, o presidente Jair Bolsonaro. O resto é mera cantilena para dormitar bovinos. Mesmo assim...
Como demonstrou reportagem da TV Globo, menos de um
mês antes da reunião Bolsonaro havia promovido o responsável por sua
segurança e o substituído pelo então número dois na função. No vídeo, ele fala textualmente: “Já tentei trocar gente de segurança no Rio,
oficialmente, e não consegui. E isso acabou. Eu não vou esperar foder a minha
família toda (...) porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da
linha. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele. Se não puder trocar
o chefe dele, troca o ministro. E ponto final. Não estamos para brincadeira”.
Contra fatos não há argumentos. Tudo o que ocorreu depois da reunião se encaixa perfeitamente
na narrativa de Sérgio Moro, e o conteúdo da gravação escancara as
entranhas de um governo que, pelo cheiro, já apodreceu há tempos. Um governo que morreu, embora se recuse a deitar.
Observação: Todo aquele conversê se assemelha mais a uma discussão entre a cafetina e as marafonas sobre o faturamento do lupanar do que a reunião entre ministros no palácio do governo. Infere-se da
linguagem chula, dos rompantes autoritários e da patente incapacidade gerencial
diante de uma crise monstruosa que o general da banda aviltou — e continua a aviltar — a
Presidência da República.
O obelisco da falta de educação — que acontece de chefiar o
MEC — quer cadeia para ministros do STF, a quem se refere com “bando de
vagabundos”. A bizarra criatura que diz ter visto Jesus na goiabeira rosna
pedidos de prisão contra governadores e prefeitos. Como se não bastasse, o capitão das trevas afirma dispor de um sistema de inteligência particular. Que funciona.
Como dito parágrafos atrás, a bola está com Augusto Aras, e a pergunta de um
milhão é se ele terá colhões (para manter a linguagem próxima à utilizada na reunião)
para denunciar o presidente que o conduziu ao cargo de procurador-geral e lhe
acena com a indicação para o STF na vaga do decano Celso de
Mello.
“Respeito, admiro, tenho profundo carinho pelo senhor
Augusto Aras. Está fazendo um trabalho excepcional do Ministério Público, como
nunca se viu na vida. Agora, me desculpe, senhor ministro Celso de Mello,
retire seu pedido porque meu telefone não será entregue", disse o
capitão, em pronunciamento feito diante do Alvorada na noite da última
sexta-feira.
A razão dos rasgados elogios de Bolsonaro a Aras salta aos olhos. Já o apelo feito pelo general da banda ao ministro Celso de Mello, para que retire seu pedido sobre o celular, e o insurgimento
do general Augusto Heleno, me causam espécie. Até porque pedido não partiu do decano e, portanto, ele não poderia retirá-lo, mesmo que quisesse. O magistrado simplesmente cumpriu o que determina o CPP, ou seja, encaminhou à PGR o pedido dos deputados do PSB, PDT e PV,
para que Aras se pronuncie. Daí se concluir que o estrelado que chefia o GSI está muito mal assessorado, juridicamente falando. E o mesmo se aplica ao ministro da Defesa e a outros fardados que endossaram a nota do general Heleno.
Augusto Aras certamente sofrerá pressões de todos
os lados. De seus subordinados no MPF, de delegados e agentes
da Polícia Federal, dos presidentes da Câmara e do Senado, de
parlamentares, e até do próprio STF, enfim... Sem falar na tentação de fazer vista grossa
às evidências ululantes em troca da vaga no Supremo, que pode pesar na balança do procurador. O detalhe — e o diabo mora nos detalhes — é que indicações do presidente para o STF precisam ser chanceladas pelo Senado.
É sabido que essas sabatinas sempre foram protocolares. Não foi à toa que a indicação de Toffoli , feita por Lula em 2009, foi aprovada pelos parlamentares, a despeito de as credenciais serem um elenco de "bons serviços" prestados ao PT de Lula, a José Dirceu e ao próprio Lula, noves fora duas reprovações em concursos para juiz de primeira instância. Dada a pusilanimidade irresponsável dos senhores senadores, esse senhor não só se tornou ministro supremo como presidente da Corte em 2018 (seu mandato termina em setembro, felizmente, e ele passará o cetro e a coroa ao ministro Luiz Fux). Mas a
história pode ser outra sob a presidência de Bolsonaro.
O capitão não só trata
aos coices o Legislativo e o Judiciário como enfiou em local e não sabido a bandeira que agitou durante toda a companha, em
repúdio ao toma lá, dá cá da “velha política”, e passou a negociar cargos e verbas com o
Centrão — que representa a pior faceta do presidencialismo de cooptação — em
troca de apoio parlamentar para bloquear eventual denúncia da PGR por crime comum ou abertura de processo de impeachment por crime de responsabilidade (tanto num caso como no outro, são necessários no mínimo 172 votos dos 513 possíveis).
Pelas últimas contas, 35 pedidos de impeachment se empilham
sobre a mesa de Rodrigo Maia, que não se dignou de analisá-los porque, segundo ele, a pandemia e a debacle da economia tornam o momento
inoportuno. Pode até não ser, mas jamais teremos uma política efetiva contra a
pandemia se Bolsonaro não for apeado do cargo. E sobram
motivos jurídicos para isso.
Por tudo o que o vídeo mostrou, Aras está obrigado a
aprofundar a investigação acerca da conduta de um mandatário que, além de
cercar-se de assessores insanos, autoritários e incapazes, pode ter cometido
crimes.
Que o procurador se mostre à altura do cargo que ocupa. A apuração não
pode se deter diante de ameaças abjetas, como a do general Augusto Heleno,
segundo o qual uma eventual apreensão do celular presidencial teria “consequências
imprevisíveis”.